Lembranças

- Adeus!

“Inferno!”, pensou Ricardo, após acordar assustado. Ao fundo, ouviu a voz de Chico Buarque, embalando a sua dor.

- Só pode ser ironia eu ter acordado justo nessa música – exclamou, aproximando-se do som exatamente no momento da indesejada frase “onde não diremos nada, nada aconteceu. Apenas seguirei como encantado ao lado teu”.

- Merda! – falou, após desligar o som.

Ao redor, maços de cigarros e garrafas de bebida alcoólica indicavam seu estado de espírito. Olhou o relógio e notou que já era tarde. Ele informava que eram duas horas da manhã.

Sentou-se. Em seu interior, a sensação de fracasso era forte. Observava tudo ao redor e notava o vazio de sua vida. Onde havia perdido tudo? Onde perdera a si mesmo? Tentava, com dificuldade, relembrar o que o levara a essa situação de vazio. Sabia o que causara. Ou melhor, quem causara. A dona de parte dos seus sonhos. A que chegara de repente e se fora da mesma forma rápida.

Ricardo se perguntava todos os dias como pôde ter depositado tudo em outro ser. Parecia que não havia aprendido nada antes dela. Era menino outra vez, inexperiente quando ela chegou. Sentia-se enfeitiçado. O sorriso dela mexera profundamente com o homem. Nunca havia visto lábios tão belos, tão maravilhosos. Cada traço dela era devastador. E, diante daquela figura, ele perdeu todas as armas.

Jamais sentira aquilo antes. Era o sentimento mais intenso que alguém poderia ter. Ele nunca acreditou que pudesse sentir algo tão forte em sua vida. E sabia, olhando para ela, que a reciprocidade era uma verdade. Um sonho realizado.

- Burro! – gritou, enquanto se lembrava de Ana. Só em pensar no nome dela, sentia arrepios. Ainda não sabia se era manifestação de asco ou de amor. E sentia nojo de si por não saber. Depois de tudo o que ela fizera, ele não poderia continuar com aquele sentimento indesejado. Fechou os olhos, tentando não pensar na sua história de desamor.

Quando ela veio, era um lindo dia de verão. Até então, ele não havia reparado a beleza da natureza e do sol. Ela o fez ver o quão bonito é o dia. Conversaram por horas. Com o cair da noite, ela anunciou que não poderia continuar ali, pois a sua mãe a esperava para o jantar. Ele sorriu, encantado com a moça. Era cedo para definições, mas ele sentia algo forte, um amor à primeira vista, talvez. Sentia-se tolo e novato. Nunca havia vivenciado aquilo.

Dias se passaram até que Ricardo pudesse ver Ana novamente. A ansiedade fez com que ele se lembrasse de sua adolescência. E sorria. À toa. Em vão. Sabia que era sinal de algo mais forte. “Em 27 anos de vida, eu não havia sentido isso e nunca pensei que fosse conseguir. Que sensação maravilhosa”, pensou, enquanto se arrumava para encontrar sua nova descoberta.

Foi até a praça e olhou ao redor. Chegara antes do previsto. Enquanto esperava, resolveu sentar e observar as pessoas a sua volta. Havia um casal que chamou a sua atenção. Dois jovens que, de mãos dadas, riam e brincavam, alheios ao mundo que os rodeava, felizes como se vivessem em uma realidade única, longe de tudo e todos. E viviam. Ele desejou ficar assim com Ana pelo resto da vida. Sorria com o pensamento, sentindo-se, mais uma vez, tolo.

- Olá. – disse uma voz que passava serenidade. Sem nem olhá-la, Ricardo sorriu. Desarmado, olhou para Ana. Ela estava linda!

- Você está linda! – disse, sem nem pensar no que acabara de fazer. Sentiu seu rosto queimar e sabia que havia ficado vermelho. Estava envergonhado.

- Obrigada, Ricardo. – ela respondeu, sorrindo. – Não precisa ficar vermelho. – brincou, passando a mão no rosto do rapaz. Ele ficou ainda mais corado do que antes.

- Odeio quando isso acontece. – disse, esfregando levemente as bochechas e sorrindo.

- Ah, eu acho muito bonitinho. É fofo. – disse ao rapaz que, após a fala da moça, ficou com cara de espanto. Ela riu quando notou a expressão de susto. – Que foi? Eu te acho fofo.

Sem conseguir dizer nada, ele apenas sorriu. “Que situação inusitada”, pensava. Não sabia como agir na frente dela e sentia seu coração disparar a cada palavra. Ficar sem ação na frente de uma pessoa não era comum. Precisava se acostumar com as novidades.

Passaram a tarde juntos. Brincaram, riram, conversaram sobre vários assuntos. Apesar do pouco tempo, pareciam bastante íntimos. E ele notara, em alguns momentos, que ela o olhava de uma maneira carinhosa. Aquilo o deixou feliz e esperançoso.

Na hora de ir embora, ele a acompanhou até a casa onde ela vivia com seus pais. Ana agradeceu a companhia e se despediram com um beijo. Rápido e sincero. Após uma troca de olhares, ele saiu.

Após aquele dia, o casal se encontrava diariamente. O sentimento de Ricardo havia crescido muito. Pela primeira vez, ele pensara em se unir definitivamente a alguém.

- Ainda é cedo, Ricardo. Não está na hora. – ela respondeu friamente quando conversaram sobre o assunto. Ele concordou. Sabia que eles estavam juntos há pouco tempo e isso não daria certo. E, pela primeira vez, não queria errar.

Um dia, acordou pela madrugada com uma ligação. Era Ana.

- Aconteceu algo?

- Sim. – respondeu a menina, com peso peculiar na voz. Algo muito estranho estava acontecendo, ele sentia.

- O que houve? Estou preocupado.

- Preciso falar com você urgentemente.

- Agora? Mas, Ana, são três horas da manhã. O que pode ser urgente? Alguém morreu?

- Não.

- Pode ser menos monossilábica?

- Estou grávida, Ricardo.

- Co...como? – perguntou o rapaz, assustado.

- É exatamente isso que você ouviu.

- Como você me diz por telefone que eu vou ser pai? – perguntou, emocionado. “A vida não poderia ser melhor. Vou ter um filho com a mulher que eu amo!”

- Mas você não vai ser pai. Estou te esperando no seu portão. – e desligou o telefone.

Ricardo ouviu um carro parar e ficou mais assustado do que antes. Sabia que Ana não dirigia e seus pais não tinham carro. Sem conseguir emitir um ruído, saiu correndo do quarto e foi para o lado de fora na casa. Diante da visão, parou. Seu coração estava acelerado, seu corpo tremia.

Ana estava com um homem desconhecido ao lado dela. Ele se dirigiu vagarosamente ao portão e abriu. Estava assustado, não conseguia entender nada. Eles trocaram olhares por alguns minutos até Ricardo perguntar o que estava havendo.

- Estou grávida. – disse, esperando o rapaz falar algo. Quando percebeu que não iria obter resposta, continuou – Ricardo, eu vou ter um filho, mas o pai não é você. Esse é o Pedro. – Ricardo olhou com fúria para o outro, desejando não saber o motivo de sua presença.

- Quem é esse cara? – perguntou.

- É o pai do meu filho. – respondeu a menina. Sem pensar, Ricardo avançou para agredir Pedro, que mostrou uma faca. – Quem é você, garota? – perguntou a Ana. – Dá pra me explicar o que está acontecendo? E você, cara, vai me matar? Se for, faça logo. – desafiou. Em resposta, Pedro soltou um riso cínico.

- Não, cara, não gosto de matar corno. – mais uma vez, Ricardo foi em direção ao outro. Dessa vez, Pedro reagiu. Antes de Ricardo se aproximar, ele o arranhou com a faca. – Da próxima, arranco a sua cabeça.

Assustado, Ricardo olhou para Ana, buscando explicações e ajuda.

- Algum tempo depois que começamos a namorar, conheci Pedro. E me apaixonei perdidamente. Não sentia nada por você antes, Ricardo. Nunca falei porque tinha pena de você e sabia o quanto gostava de mim. Então nos envolvemos. Achei que nunca iríamos adiante, mas fui me apegando cada vez mais a ele e hoje descobri que estou grávida. Nada do que disser vai aliviar minha culpa. Nem eu quero isso. Só quero ir embora com Pedro e nunca mais voltar a te ver. – ao dizer a última frase, Ana olhou para Ricardo. Ele viu alguém em sua frente e não conseguiu reconhecer. “Essa não é a Ana que eu conheço. Ela é doce, sensível e me ama. Não é esse monstro que surgiu aqui com outra pessoa.” Sem conseguir esconder a dor, uma lágrima rolou pelo seu rosto.

- Adeus! – disse a garota, que seguiu para o carro com o pai do seu filho.

- Desejo que você seja muito infeliz, Ana. Que você sofra como eu estou sofrendo. Tomara que sua vida seja repleta de decepções. – praguejou Ricardo.

Ao entrar em casa, avistou uma foto do casal em cima da mesa. Pegou álcool e fósforo e foi ao quintal. Queimou a foto enquanto desejava incendiar a dor que o dominara. Nunca amara alguém e nunca havia sido traído. Não tinha sofrido por ninguém em sua vida. Diante das chamas que transformavam seu passado em pó, desejou nunca mais encontrar outra pessoa. Queria ficar só. A solidão não o trairia e não o magoaria.

Ricardo, após recordar toda a dor que Ana havia lhe causado, abriu os olhos. Sentia-os queimar, assim como o seu peito. Levantou-se, abriu as janelas e viu que o dia se aproximava. Respirou fundo, ajeitou a casa e entrou no banho. Enquanto a água lavava suas dores, pensou que, de hoje em diante, tentaria não pensar mais nela. Nem ela e nem ninguém valia uma lágrima sua.

Após sair do banho, arrumou-se e foi para o trabalho. Ao fechar a porta da casa, jurou trancar as gavetas da memória.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 27/09/2012
Reeditado em 15/06/2015
Código do texto: T3903382
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.