FAZER PARTE DA FESTA
Merda foi a primeira palavra que me ocorreu quando coloquei a mão no bolso da bermuda e não achei o dinheiro.
Havia um sol radiante iluminando aquela manhã de domingo, por coincidência, dois de fevereiro, dia da padroeira de minha cidade natal. A festa ocorria nas cercanias da igreja e só perdia em importância para as festas de fim de ano.
Merda era palavrão. Então, olhei para o céu como a pedir desculpa pelo pecado cometido de forma tão inconsequente, ainda que espontâneo e movido pelo doloroso sentimento de perda. Não era muito dinheiro, mas trazia um tanto de felicidade possível em pastéis quentinhos e saborosos, a pescaria, a roleta de cavalinhos, o bazar, um refrigerante de limão que chamávamos de "gasosa". Mas, acima de tudo, significava fazer parte da festa.
Parei na calçada da rua principal e olhei em volta, com o pensamento mágico de ver a nota de dinheiro caída por perto. Naquela hora, dez da manhã, a rua estava deserta, pois a festa acontecia e estava em volta da igreja, a umas oito quadras dali. A missa começava e a festa seria logo após, em geral pelas onze horas. Meu pai estava envolvido com o preparo do churrasco em espetos de pau fincados ao lado de uma vala que estaria coberta de brasa ao meio dia. Minha mãe, na cozinha do salão da paróquia, preparava os pastéis que seriam fritos na hora de servir, pelo meio da tarde.
Uma esperança me alimentava quando resolvi refazer o caminho de onde estava até minha casa.
Vasculhei metro a metro as cinco quadras percorridas, por inúmeras vezes. Quando desisti, a festa já estava começando e eu deixara de comparecer à missa obrigatória do domingo, que, em razão da festa, ocorreria, numa última oportunidade, às dez horas.
Com o peito oprimido pela tristeza e a culpa pela infração grave cometida, sentei no cordão da calçada, uma quadra antes da igreja e chorei. Parecia haver um precipício enorme separando aquele momento do que havia ocorrido no dia anterior, ao pé da cama de minha avó, quase inválida pela artrite reumatóide. Ela me chamara no quarto e me pedira que fechasse os olhos e abrisse a mão, no que obedeci, automaticamente, como sempre fizera. Abri os olhos quando senti os dedos nodosos e curvos pela doença depositarem, na minha mão aberta, um rolinho de papel, que descobri ser uma nota de dinheiro.
- Para a festa de amanhã. - disse-me ela.
Os olhos dela brilhavam tanto quanto brilhou o meu coração. Dividíamos, naquele momento, uma rara alegria, que nunca mais dividiríamos.
Não tinha noção, na época, do quanto valia aquele dinheiro, mas tinha a percepção de que, naquela festa, eu seria um protagonista e não um mero expectador, como vinha acontecendo na minha vida.
Quando ela morreu, eu já era adulto e morava em Porto Alegre, mas fui no enterro. Nenhuma dor constrangia meu coração, pela relação fria que sempre tivemos.
A rosa que coloquei no túmulo tinha o significado de lembrar daquele encontro mágico que tivemos nos meus sete anos e que sempre interpretei como a única mensagem que tive de ter o direito em fazer parte da festa da vida.
Merda foi a primeira palavra que me ocorreu quando coloquei a mão no bolso da bermuda e não achei o dinheiro.
Havia um sol radiante iluminando aquela manhã de domingo, por coincidência, dois de fevereiro, dia da padroeira de minha cidade natal. A festa ocorria nas cercanias da igreja e só perdia em importância para as festas de fim de ano.
Merda era palavrão. Então, olhei para o céu como a pedir desculpa pelo pecado cometido de forma tão inconsequente, ainda que espontâneo e movido pelo doloroso sentimento de perda. Não era muito dinheiro, mas trazia um tanto de felicidade possível em pastéis quentinhos e saborosos, a pescaria, a roleta de cavalinhos, o bazar, um refrigerante de limão que chamávamos de "gasosa". Mas, acima de tudo, significava fazer parte da festa.
Parei na calçada da rua principal e olhei em volta, com o pensamento mágico de ver a nota de dinheiro caída por perto. Naquela hora, dez da manhã, a rua estava deserta, pois a festa acontecia e estava em volta da igreja, a umas oito quadras dali. A missa começava e a festa seria logo após, em geral pelas onze horas. Meu pai estava envolvido com o preparo do churrasco em espetos de pau fincados ao lado de uma vala que estaria coberta de brasa ao meio dia. Minha mãe, na cozinha do salão da paróquia, preparava os pastéis que seriam fritos na hora de servir, pelo meio da tarde.
Uma esperança me alimentava quando resolvi refazer o caminho de onde estava até minha casa.
Vasculhei metro a metro as cinco quadras percorridas, por inúmeras vezes. Quando desisti, a festa já estava começando e eu deixara de comparecer à missa obrigatória do domingo, que, em razão da festa, ocorreria, numa última oportunidade, às dez horas.
Com o peito oprimido pela tristeza e a culpa pela infração grave cometida, sentei no cordão da calçada, uma quadra antes da igreja e chorei. Parecia haver um precipício enorme separando aquele momento do que havia ocorrido no dia anterior, ao pé da cama de minha avó, quase inválida pela artrite reumatóide. Ela me chamara no quarto e me pedira que fechasse os olhos e abrisse a mão, no que obedeci, automaticamente, como sempre fizera. Abri os olhos quando senti os dedos nodosos e curvos pela doença depositarem, na minha mão aberta, um rolinho de papel, que descobri ser uma nota de dinheiro.
- Para a festa de amanhã. - disse-me ela.
Os olhos dela brilhavam tanto quanto brilhou o meu coração. Dividíamos, naquele momento, uma rara alegria, que nunca mais dividiríamos.
Não tinha noção, na época, do quanto valia aquele dinheiro, mas tinha a percepção de que, naquela festa, eu seria um protagonista e não um mero expectador, como vinha acontecendo na minha vida.
Quando ela morreu, eu já era adulto e morava em Porto Alegre, mas fui no enterro. Nenhuma dor constrangia meu coração, pela relação fria que sempre tivemos.
A rosa que coloquei no túmulo tinha o significado de lembrar daquele encontro mágico que tivemos nos meus sete anos e que sempre interpretei como a única mensagem que tive de ter o direito em fazer parte da festa da vida.