O Despertar

Acordou assustado, com o suor frio escorrendo pelo corpo. Devia ter tido um pesadelo, apesar de não conseguir se recordar de nada. Ainda com a respiração ligeiramente acelerada, olhou a janela.

Uma leve brisa tremulava a cortina. O céu tinha um tom laranja roseado. Deveria ser bem cedo. Tateou no criado mudo o despertador para acender o visor digital e ver a hora. Enfim encontrou o botão. Eram 18:40h.

Levantou-se de um pulo. Como poderia ter dormido tanto assim? Como não ouvira o despertador tocar as 7:00h? Perdera todo o dia de trabalho! Como ninguém havia ligado procurando-o?

Inconformado, foi até a cozinha olhar o relógio analógico na parede. Acendeu a luz e para seu desespero, o relógio da cozinha indicava a mesma coisa.

Apesar de desolado, uma coisa chamou sua atenção: a quantidade de correspondências que havia em sua porta. Nunca recebera tantas na vida, deveria ter pelo menos umas cem. Juntou todas em seu colo e as colocou em cima da mesa. Algumas (muitas) possuíam envelopes semelhantes. De onde vinham mesmo?

O cérebro fazia um grande esforço para tentar romper a trava que o impelia de se recordar de onde eram alguns daqueles envelopes... até que se lembrou.

Os azuis eram da companhia elétrica.

Os laranja da companhia de água.

Os verdes do condomínio.

Só não entendia porque haviam tantos.

Organizou os envelopes e foi olhá-los. Apavorou-se.

Alguns envelopes eram de anos atrás, os mais antigos de seis! Concordaria que poderia ter sido um erro de impressão se não fosse o fato de todos seus envelopes mais antigos serem de seis anos atrás. Haviam cobranças de compras em lojas que não foram pagas, avisos do banco de pagamento de faturas em pendência, do condomínio, aviso de corte de água... Foi então que hesitou.

Se, por um delírio mágico, realmente aquelas cartas eram de seis anos atrás, como ainda havia luz em seu apartamento? Como não haviam cortado?

Sentia-se mal, zonzo. Andou cambaleante até o banheiro e abriu a torneira. A água saiu brilhante e cristalina. Como também não haviam cortado? Como não havia sido despejado do condomínio?

Estava atordoado. Encheu a mão com água e jogou no rosto, os olhos fechados, o repetiu por várias vezes. Encostou a boca na torneira para tomar um pouco de água. Tinha um gosto estranho, meio ferroso e um cheiro adocicado, não parecia água. Quando abriu os olhos e olhou-se no espelho, foi tomado pelo horror. Estava coberto de sangue, as mãos sujas de sangue, os cabelos... e o que saía da torneira não era água, se não sangue. Logo, o que havia bebido definitivamente não era água, se não sangue também.

Sentiu o estomago embrulhar e se contorcer compulsivamente. Havia bebido sangue, sangue, como poderia uma torneira expelir sangue? E a vontade de vomitar chegou grande e forte.

Caiu de joelhos no piso, apertando a barriga que se contorcia e repuxava até que não suportou mais e gorfou. O que saiu de dentro de si foi nada mais que uma grande bola de vermes gordos e frenéticos que logo se espalharam pelo chão e começaram sua caminhada descontrolada pelo piso.

O homem levantou-se enojado, desesperado.

Era a loucura, a loucura que havia vindo buscá-lo tal como a morte um dia viria.

Saiu correndo em direção a porta da cozinha e quando a abriu, havia outra porta atrás daquela e mais uma e outra e outra.

Rendeu-se de joelhos no chão como se esperasse que alguma entidade viesse resgatá-lo do seu desespero.

Agora podia ver as coisas se transformando.

As paredes do apartamento iam lentamente perdendo seu imaculado tom branco e se tornando cada vez mais sujas e cheias de fungos que formavam grandes colonias felpudas.As torneiras iam perdendo seu brilho, se tornando opacas. As lampadas que estavam acesas queimaram. As frutas na fruteira enegreceram e por fim viraram alguns murchos, disformes e mal cheirosos pedaços de nada. Ouviu algumas coisas caírem (de algum lugar) e se despedaçarem, mas não sabia o que era.

Sentia a barba crescendo em seu rosto, o cabelo em sua cabeça e para seu horror, as roupas se afrouxando em seu corpo. Pela lógica, morreria de inanição dentro de instantes.

Caiu com o rosto chapado no chão agora imundo e cheio de vermes. Vermes que não estavam ali até o momento em que veio cair.

O estomago deu um solavanco de repulsa, mas não havia o que expelir. Na verdade não havia muito mais de algo em seu estomago. Sentia as forças se esvaindo. Com esforço olhou seus punhos e eles não tinham mais massa do que o de uma de criança de 12 anos.

Era como se o tempo também houvesse dormindo nesses 6 anos e agora corria para por tudo em ordem, como uma criança que faz bagunça em sua casa e daí se dá conta que a mãe está para chegar e então corre arrumá-la.

Sabia que a coisa não terminaria com a sua morte. Ainda precisava apodrecer.

Fechou os olhos, queria morrer com os olhos fechados. E morreu.

Do lado de fora, o senhor dos sonhos estava sentado a beira da cama. Dançava com seus dedos pelo cabelo do homem que até a pouco ainda se debatia na cama. Olhou o relógio digital. Apesar de o tempo não existir para ele, existia para os humanos e era isso que importava. Eram 7horas. Hora de acordar.