O SERVO
Olhava sempre ao alto, sua tez resplandecia com os últimos raios solares daquela maravilhosa e límpida tarde.
Estava solitário. Os pássaros faziam o cortejo, como se aquele fosse um rei. O azul-celeste de seus olhos fitava o verde vivo das videiras, e o marrom seco do solo queimado, que ao sopro suave da brisa, soltava uma poeira fina, a qual cobria a vegetação rasteira do caminho.
Caminhava o homem, sem descansar e olhar para trás. Seu olhar sério refletia sua compenetração e a contemplação de tudo que o cercava. Um sorriso esboçava-se em seu rosto ao perceber os pássaros cantantes, que retornavam aos seus ninhos, felizes se abrigavam para passar a noite. A brisa fazia seus cabelos ondulados esvoaçarem. O caminhar era calmo. Os passos eram sequenciais e constantes, quase não parava. O olhar fixo ao cume do morro fazia-o ainda mais distante, como se chegasse ao céu, e lá permaneceria.
O caminho estava coberto por poeira, que ao longe quando se movia parecia possuir vida própria com helicoidais figuras autônomas criadas pelo vento, vegetação rasteira com pequenas flores rosa e brancas que ofereciam ao caminho uma rósea imagem de paz e conforto; e algumas pedrinhas soltas pelo caminho que ora ou outra entrava em suas sandálias, que eram retiradas pacienciosamente como se elas o fizessem refletir. Seus pés estavam levemente empoeirados e cansados pelo longo caminho percorrido.
O homem olhou à sua frente e percebeu uma fonte de água que saía das pedras e jorrava cristalina formando um pequeno córrego e logo desaparecia ao meio das liquentas rochas. Ficou a admirar a limpidez da água e logo juntou as suas mãos, como uma concha, e bebeu-a agradecendo-a ao Pai por sua função de dar vida a todas as criaturas da terra. Molhou o rosto e os cabelos e seguiu caminho.
No cume do morro morava, em uma imponente casa, uma família que optou em viver longe de tudo e de todos. Da família eram três pessoas pai, mãe e um filho. Semanalmente ordenavam a um dos empregados buscar na cidade mantimentos e o que precisassem. O empregado de confiança da família estava muito doente há mais de um mês e a família começava a sentir falta de algumas coisas para casa. O serviçal não recebeu nenhum medicamento para o tratamento de um mal súbito que o enfraquecera a ponto de não se pôr mais em pé. A família recolhera-se ainda mais e, deixara o pobre empregado a sofrer num quarto escuro e fétido pelo bolor das paredes. O pobre suplicava por ajuda. Clamava ao céu principalmente. Sua dor era muito mais pelo abandono do que pela doença em si. Via-se próximo da morte, mas agonizava esperançoso pela clemência dos seus senhores aos quais sempre se doou pela troca de pão e lugar para as noites recostar sua cabeça.
O agonizante escuta passos se aproximarem do quarto. Os passos se aproximam cada vez mais. Uma paz tomou completamente o serviçal, o qual percebeu através das frestas o sol resplandecente e os pássaros a cantar à procura de ninhos nos beirais do casarão para passar a noite. O homem esperou os passos desaparecerem. Lembrou-se do seu passado dedicado apaixonadamente à família, seus senhores. Alegrava-se pela certeza do dever cumprido: ordens sempre recebidas e executadas com a devoção dos santos. As mãos grossamente calejadas juntavam-se em um ato solene ao peito. Os lábios proferiram palavras sacras de clamor por piedade. A luz que lhe era próxima faz-se distante, até que lhe são toldados os sentidos.
Alguém bate a porta. O patrão a abre. Aparece-lhe um homem de vestes brancas numa alvura impressionista que se apresenta como seu servo.
A voz do senhor segue-se friamente:
- Você começa amanhã. Alfredo acaba de falecer.
(Guarapuava, 1999)