Aos Pés da Cama...
Há algum tempo o desejo de me deitar ao lado contrário da cama vinha incomodando a todos que me rodeavam. Por mais que eu tentasse conciliar o sono deitada dentro dos padrões, minha alma se inquietava. Quase uma obsessão me aconchegar aos pés da cama e ter a sensação de ter encontrado meu lugar, meu ninho. Mas apesar disso foram muitas as noites em que acordei banhada em suor, em lágrimas sem saber ao certo o porquê.
Dentro dos meus pesadelos, vultos me rondavam, alguns sem rostos, outros sem formas, mas sempre presentes como se estivessem a dissecar meu sono, de onde eu fugia para estar na fronteira entre a carne e o espírito. Nas diversas vezes que tentei dormir no lugar onde aguardava meu corpo para o descanso me sentia ainda pior, o aconchego inicial só aparecia quando eu me rendia a esse estranho desejo. Sabia que as noites não seriam serenas, mas era tudo que eu tinha em meio à minha insônia.
Entre o sonho e a realidade vagava por entre cemitérios, túmulos, cheiros e choros. Tudo tão real como se pudesse fazer parte do mundo dos mortos. Em uma noite sentindo meu corpo adormecido e minha alma desperta adentrei em um cemitério até então desconhecido por mim. Os anjos guardavam silenciosos seus protegidos, a nudez que os cobria era o manto e o mantra a enfeitar jazigos, outros guardavam covas, onde não se via nem mesmo a identificação de quem ali tinha seus ossos, mas nem assim os anjos faziam pouco de sua existência, ou não existência...
Caminhando por esse vale, me sentia em casa, nada me assombrava, vozes e desejos comandavam meus passos a seguir adiante. O cheiro de jasmins guiava meus instintos. Ao me adentrar entre um dos corredores, uma onda de tristeza tomou posse de mim, comecei a soluçar sem parar em um choro convulsivo vindo das entranhas de minha alma.
Seres estranhos começaram a aparecer, dois homens, mais precisamente, estranhos neles eram seus olhos, a roupa suja de sangue de poeira, e levavam consigo uma pá nas mãos. Ao lado deles via-se alguns cães que ladravam furiosamente sem conseguir toca-los. Ao me olharem os dois se afastaram como se combinassem algo, com medo apertei o passo em direção ao cheiro de jasmins... Procurei pelos anjos e neles senti que aquela era a minha busca, nada fariam, me acompanhariam de longe sem interferir, era preciso que eu mesma me encontrasse...
Descrever o que senti quando enfim localizei de onde vinham as vozes e o cheiro forte não está ao meu alcance, fui levada por uma comoção tão forte que caí de joelhos diante daquele túmulo, nesse momento reparei que minhas roupas eram roupas antigas, uma saia longa e esverdeada da cor do próprio túmulo e uma blusa amarelada pelo tempo cobriam meu corpo.
A pequena igreja tomada pelas flores e pelo limbo que coloria ainda mais de verde seus azulejos, em que se transformou aquela morada, gotejava água por todos os seus cantos, as vozes eram de fiéis a rezar diante do túmulo. Velas acesas, velas mortas iluminavam e encaminhavam as orações, o odor forte da cera se misturava aos jasmins, as pessoas pareciam não me notar, se vestiam diferentemente de mim. Ao longe os vultos estranhos me olhavam, ainda com a maldita pá nas mãos e alguns sacos que só dessa vez percebi, onde carregavam algo... Os cães enlouquecidos urravam sem parar.
No meu choro vislumbrei um pensamento: Cave, cave, cave, encontre a chave do seu segredo.
Mas eu não podia cavar, não era uma cova, e o túmulo se desmanchava em lágrimas cada vez mais fortes. Em um ímpeto de desespero comecei a cavar ao lado das pedras, dos tijolos erguidos em um quase santuário , ninguém me notava, ninguém me ouvia... Fui retirando a terra até meus dedos sangrarem e meus joelhos estarem em carne viva, nada encontrei, nada, minhas roupas ficaram manchadas de lágrimas e sangue...Meus cabelos emaranhados de terra. Os vultos ao longe riam de mim, da minha impotência, os anjos se compadeciam do meu desespero sem nada fazer... Desfaleci...
Acordei novamente banhada de suor, meu corpo dolorido inerte não me respondia. Foi com dificuldade que consegui vencer sua resistência. O sonho veio forte em minha lembrança, cada detalhe dele, cada pormenor se fez real e a tristeza me envolveu.
Procurei minha mãe, precisava de uma luz, ela tão religiosa não acreditava em sonhos, premonições, espíritos, mas sabia que a minha natureza era diferente da dela, que por mais que eu tentasse era difícil manter meus pés no chão.
Contei à ela meu sonho, e a medida que fui relatando entrei quase em transe, revivendo tudo novamente. Minha mãe foi empalidecendo cada vez mais, cada vez mais...
Creio ter sido essa uma das últimas conversas antes que ela viesse a falecer.
Diante da minha angústia, então ela me contou uma história.
“Havia uma menina há muito tempo na mesma cidade em que nasci, mas onde residi apenas nos primeiros anos de minha infância, essa menina nasceu quase cinqüenta anos antes da minha existência. Ela vivia sozinha com seu pai em uma fazenda, a mãe morrera anos antes. Uma menina, virgem em seus 12 anos de idade, porém muito linda chamando a atenção de quem por ela passasse. O pai precisando de ajuda contratou dois serviçais para os trabalhos na fazenda.
Um dia em que seu pai não estava, os serviçais invadiram a casa, arrastaram a menina pelos cabelos pra fora de casa e em um ato de crueldade a estupraram, a violentaram de todas as formas possíveis, os cães, ela tinha muitos, esses estavam presos e latiam furiosamente sem poder defender sua pequena dona... Nada os fez parar, nem seus gritos, nem seu sangue, nem suas lágrimas. Alternavam-se nessa triste tarefa, enquanto um a saqueava outro saqueava sua casa em busca de jóias, de pertences.
Quando enfim se deram por satisfeitos, os cães babavam de ódio, presos em suas coleiras. A menina agonizava, e eles guardavam o fruto do roubo em sacos. Um a carregou e o outro os malditos sacos.
Preocupados em o que fazer com a menina que ainda vivia, cavaram uma cova, na pressa de fugirem não perderam tempo em exterminá-la de uma vez, apenas a enterraram de cabeça para baixo para que não pudesse da cova rasa sair... E assim foi feito, a menina por fim expirou seu último suspiro na terra que a sufocava... E eles partiram.
O pai da menina ao chegar a sua fazenda entrou em desespero, enlouquecido procurava a filha por toda a parte, pessoas foram chamadas para a busca e nada... Alguém por fim teve a idéia de soltar os cães, esses, embrenharam-se nos matos encontrando o local onde o corpinho dela jazia. Cavaram em desespero por sua dona, mas só encontram a carne dilacerada, os ossos quebrados, a virgindade profanada.
Os cães então se colocaram em busca dos algozes da pobre criança, sem descanso percorreram toda a estrada que os levaria à cidade e os encontraram... Os dois ainda tinham nas roupas a marca do ato covarde, os cães o cercaram e uivavam por todo o tempo sem deixar que eles fugissem até que o próprio pai os alcançassem...
Foram presos, julgados e condenados... A menina enterrada de cabeça pra baixo, ganhou um lindo jazigo verde onde jasmins foram plantados.”
Hoje eu sei que com o tempo a romaria se fez presente e seu túmulo chora e pede, pede algo, que em meus sonhos tentei buscar, mas não sei o que é, não sei... É preciso que eu encontre a sua primeira cova, mas não sei onde seria, lá se encontram o segredo dela e o meu.
Enquanto isso eu ainda durmo aos pés da cama...