Sodoma e Gomorra às Avessas

O tempo não estava bom naquela quarta-feira de cinzas de 1997. Nublado e sombrio, o céu ainda apresentava os vestígios da chuva que lavou o festival da carne. As ruas estavam repletas de confetes e serpentinas misturados à lama feita pela mistura da água da chuva e da sujeira do sapato dos foliões e da própria rua. No sambódromo, alegorias completamente perdidas, ensopadas, furadas. Havia um carro alegórico cuja cúpula se reduzira a nada. Os bustos dos grandes líderes indígenas homenageados por uma das escolas de samba estavam totalmente destruídos.

As casas haviam sido destruídas, seus telhados arrancados, as mobílias ensopadas, algumas boiando. Não havia lugar seco por toda Manaus. Os televisores pifados e as antenas telefônicas caídas faziam com que a cidade se tornasse incomunicável. Crianças perderam seus brinquedos favoritos e os adultos que restaram se perguntavam o que, afinal, havia acontecido. O Carnaval daquele ano não tinha sido regado pela chuva: havia sido destruído por ela.

Sentada no terceiro degrau da escada da casa de sua tia, Maria Eduarda, Duda, com seus seis anos e seu coelhinho de pelúcia que nunca largava, observava três corpos boiando no metro de água que inundava a sala de estar da casa, entre a mobília. Seus pés estavam de modo que a água ainda os alcançava. Se os olhos de seu pai estivessem abertos, seria possível ver que os de Duda eram cópias menores, um par de petecas cor de ébano. A garota estava tão molhada que já não se distinguia mais o que era lágrima e o que era água da chuva.

Entre inocentes e culpados, todos foram castigados naquele Carnaval de 1997.

A B Queiroz
Enviado por A B Queiroz em 29/06/2012
Reeditado em 29/06/2012
Código do texto: T3751253
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