A OBRA
O menino parecia pensativo, sentado no tapete da sala e montando algo com pecinhas de plástico encaixáveis. Ao lado, também no tapete, um enorme urso azul parecia acompanhar a engenhosa operação, sem que qualquer um dos dois denotasse ter conhecimento de minha presença.
Estaria ele mesmo pensativo? Criança de quatro anos fica pensativa? Com tão poucas informações a serem processadas, um incipiente processo de associações, experiências primárias ou mesmo apenas germinais, por certo seriam incapazes de permitir que ele tivesse um raciocínio mais prolongado, uma abstração mais complexa. Minha lógica de adulto me impedia de aceitar que haveria dentro daquela cabecinha um projeto, um plano, uma meta.
Enquanto o observava, emergido em conjunturas racionais, percebi que ele se levantou, colocou o urso debaixo do braço e caminhou em direção à estante de livros. Parou em frente à coleção de capa azul, estendeu a mãozinha delicada e tocou de leve a testada de um dos volumes. Depois, parecendo satisfeito com a experiência, voltou para o tapete, permaneceu por um tempo observando o que havia montado e, então, desmanchou o que já havia construído. Pareceu-me tudo premeditado, dentro de uma sequência lógica de raciocínio e da qual eu participava apenas perifericamente, sem conseguir entender o que realmente estava acontecendo.
Larguei definitivamente o jornal de lado e fui em busca de uma explicação, tentando estabelecer uma conexão entre os atos que acabara de presenciar. Fui até a estante e peguei o livro que ele tocara: tratava de projetos de residências, amplamente ilustrado e escrito em inglês. Pareceu-me lógico, ainda que surpreendente.
Voltando à minha poltrona de leitura, concentrei-me na nova obra que surgia do amontoado de peças espalhadas pelo tapete.
Num dado momento ele parou, contemplou o trabalho e pareceu dar-se por satisfeito, com um discreto sorriso e um terno abraço no urso companheiro.Só então pareceu perceber minha presença e me disse "oi" ao notar que eu estava prestando atenção nele.
Amorosamente e num gesto que pretendia mostrar compreensão e uma certa cumplicidade, disse-lhe que a casa tinha ficado muito bonita.
Ele me olhou com ar de surpresa e, dirigindo-se ao urso, balbuciou: "Isto não é uma casa. É um fusca."