Tradições
Tinhas os olhos amendoados, nasceu do acaso, só Deus sabe quem o pai seria. A mãe, nem essa preocupou-se, mas tinha ela os olhos amendoados. Diferentes dos da mãe, azuis, herdados de um país distante, sabe-se lá de quem também.
Estava no círculo vicioso, avó, mãe e filha, paridas ao acaso, criadas às migalhas.
Aprendeu cedo como mãe e avó ganhavam a vida. Observava do quarto escuro e úmido o vai e vem dos homens na casa suja. Dois quartos, uma cozinha e um banheiro. Um sempre estava ocupado por algum desconhecido que dividia a cama com as mulheres. Às vezes por lá ficavam por semanas, meses. A hora da comida torna-ve mais escassa, tinham o dom, as duas de envolverem-se com a escória do mundo. Homens mais podres do que elas mesmas por uma misera quantia. Dia a dia viviam da ilusão que algum deles as salvaria do limbo que destilavam de seus uteros no abortar de fetos e mais fetos.
Mas a garotinha ali estava viva, aprendendo tudo, prestando atenção ao vai e vem na cama. Ao sobe e desce, aos gêmidos, às facas atiradas a cada fim de relacionamento pela avó e pela mãe vividos.
Aprendeu a fingir sorrisos a distribuir carinhos antes da adolescência aos tios que por ela passavam. A mãe e a avó passaram a observá-la como um investimento. Entre sussurros e tramoias cuidavam de seu primeiro cliente.
Na escola, seus olhos amendoados destoavam do seu comportamento, olhos honestos, inocentes em uma mente já doente.
Aos meninos ensinou bolinações em todos os cantos da escola. Diretora e professoras ignoravam seus atos, parecia tão inocente, sofrida que a qualquer comentario, defendiam-na sem pestanejar.
Aos quinze anos, conhecia mais da vida do que qualquer outra garota da sua idade. Foi nesse periodo que suas cuidadoras, acharam propício
iniciá-la no ganha pão dos seus oficios.
O felizardo seria o dono de um mercado em outro bairro. Sim, teria que ser de uma distância razoável para evitar o falatorio dos vizinhos.
Aconselharam-na por dias, lembraram dos favores que devia por estar viva, por ter um antro para morar e um nome sem sobrenome.
Tudo ouvia, tudo assentia sem pestanejar, sempre inocente, pura em suas respostas. Suas atividades há muito fugiram dos portões da escola, da vizinhança, do bairro. Apenas as duas "senhoras" ignoravam, mergulhadas no alcool e em seus prazeres fugiam à realidade.
Realidade essa escancarada quando no dia programado, surge a mocinha devidamente paramentada para o abate, a saia curta a exibir-lhe as pernas, a blusa decotada explodindo a segurar os seios fartos. A surpresa nos olhos do freguês passou despercebida às duas cafetinas. Não da menina. Num gesto com as mãos pediu que seu pretendente não se manifestasse. Há alguns meses havia se deitado com ele, deitado não seria o termo, doou-se a ele, em pé na sala em que ficava o senhor de respeito a administrar o pequeno mercado. Fora pega roubando, conduzida ao dono, não se rogou ao pagamento por ele pedido.
Nunca mais viram-se. Nunca mais o pobre infeliz esqueceu aqueles olhos puros a contrariar o corpo lascivo. Gostava de garotas, mas aquela tinha sido a mais libidinosa de todas.
Saíram as cafetinas da casa alegando compromissos, era a senha para o estranho casal iniciar seus trabalhos.
Diferentemente do dia que se conheceram negou-se a tudo a menina. Nada feito, nenhum ato, nenhum avanço.
Humilhado o pai de família, sim pois, era um respeitável pai de belas crianças, duas meninas. Colocou-se a esbravejar e ameaçar a ninfeta.
No ponto devido fez ela o seu pedido. Cederia seus apelos se a tirasse dali.
Prometeu mundos e fundos, obteve da garota todos os desejos realizados. Deixou o dinheiro em cima da pia suja e fedida.
Ao voltarem as duas "senhoras", comemoraram o negocio bem feito. Já planejando um próximo.
Dias passaram, noites passaram, a garota enjoada sem notícias do ilibado senhor, procurou-o. Recebeu o deboche e uma surra dos seguranças do mesmo mercado onde havia se dado a ele.
Era esperta, sabia-se grávida. Não queria pra ela o mesmo futuro que tiveram sua mãe e avó, tudo fizera até chegar a esse ponto. A criança não sabia de quem era. Foram tantos os parceiros na rua, garotos que atiçavam seus desejos, que não poderia atribuir a paternidade a nenhum deles. Queria o dono do mercado como pai.
Montou guarda esperando-o sair, machucada e humilhada queria vingança. Ele prometera tirá-la do chiqueiro onde vivia.
Gritou e esbravejou acusando-o de engravidá-la, pessoas que passavam pela rua ouviam escandalizadas.
Não conseguiu seu intento, o empresario esperto, calou a boca da jovem propondo DNA antes rebento vir ao mundo. Acuada, vendo seus planos por terra, jurou que a ele destruíria.
Encontrou a família depois de dias buscando informações de sua morada, ainda no portão saíndo para ir ao culto. Munida de seu vasto vocabulario expos todas as particularidades do corpo de seu amante, o infeliz atestava uma mancha de nascença que não deixou dúvidas à esposa. Contou detalhes, todos, até os mais sórdios, enquanto ele, infartava.
Bateu em retirada feliz, ao vê-lo agonizando diante dos olhos doloridos da esposa e o choro das crianças.
Naquela noite, abriu ela mesma os serviços da casa, seria a anfitriã, mãe e avó comemoraram o ganho previsto.
Meses mais tarde, mais uma menina nascia, mais uma para dar continuidade à tradição familiar. Tinha os olhos verdes, nem Deus saberia de quem herdara.