Herói

O funeral de Isaac foi simples. Muitas pessoas presentes, muito silêncio em respeito a um homem que viveu muito bem. Teve muito sucesso nos negócios, transformou os filhos em grandes homens, amou sua esposa como nenhum outro homem. A fez feliz.

Talvez o membro de maior respeito da colônia judaica de São Paulo, um cidadão exemplar, uma vida regrada, sem deslizes.

Presente no funeral estava uma família desconhecida de todos, muito abalada com sua morte. Pequena de cinco pessoas, dentre elas dois casais beirando os cinqüenta anos e um rapaz de vinte e poucos anos.

Apesar de estranhar aquela presença Débora, a viúva de Isaac, foi recepcioná-los.

- Bom dia, vocês conheciam Isaac?

- Sim, conhecíamos. Meu nome é Jürgen, essa é minha esposa Ana, essa minha irmã Catarina e seu esposo Klaus. Aquele é meu filho Lothar. – disse o homem meio sem jeito.

Débora ficou sem palavras. As lágrimas vieram aos olhos, estarrecida, ficou observando-os por alguns instantes. Os filhos e amigos de Isaac também se aproximaram atônitos. O rabino que ia começar a cerimônia reconheceu Jürgen e Catarina. Também ficou com os olhos marejados. Jürgen continuou:

- Isaac foi o melhor homem que existiu. Ele foi o nosso pai.

A lenda sobre essa família era a única história mal contada de Isaac. Uma história esquecida por anos, só os mais velhos se lembravam. Débora nunca questionou Isaac, ninguém nunca o questionou sobre o que aconteceu na Alemanha durante a guerra. O rabino Ariel era o único presente que sabia, pois esteve no mesmo campo de concentração de Isaac.

- Rabino Ariel. Queremos saber o que aconteceu realmente. Nosso pai Isaac nunca contou detalhes. – perguntou Catarina.

- É uma longa história.

- Por favor, queremos saber de onde realmente viemos.

- Vocês são alemães, filhos do oficial da SS Jürgen Haas. Isaac trouxe-os ao Brasil como judeus, dizendo que eram seus filhos.

- Disso sabemos, queremos saber por que nosso pai nos trouxe. – disse Jürgen.

- Foi uma promessa que Isaac fez a Jürgen. Eles eram amigos.

- Mas como?

- No campo de concentração, eles fizeram amizade. Jürgen iria se tornar grande mestre em xadrez, só que não estava conseguindo treinar já que não tinha um adversário à altura. Ele então resolveu procurar entre os judeus alguém que soubesse jogar. Isaac era um ótimo jogador.

- Mas como ele fez amizade com seu algoz?

- Na verdade, Jürgen não autorizou nenhuma execução em seu campo por causa de Isaac. Ele depois foi executado por traição, libertou todos que estavam lá. Os dois se respeitavam. Isaac ganhou as duas primeiras partidas que jogou contra Jürgen, a partir daí durante dois anos, todos os dias eles jogavam um contra o outro.

- Não sabíamos que ele jogava xadrez.

- Eu também não sabia. – disse Débora.

- Essa foi outra promessa, apesar de ser apaixonado pelo xadrez, Isaac nunca mais sentou na frente de um tabuleiro. Ele disse a Jürgen que ele seria seu último adversário afinal imaginávamos que nossa salvação era difícil. O comando alemão estava mudando com freqüência no final da guerra, sabíamos que Jürgen seria transferido e seriamos mortos pelo próximo comandante. O que não sabíamos é que Jürgen daria sua vida pela nossa. Como Isaac disse que ele seria seu último adversário, cumpriu a promessa e nunca mais jogou. Jürgen alertou-o sobre o que dizia. Perguntou a Isaac se ele não contava com a possibilidade de se salvar provavelmente já planejando libertar-nos.

- Como vocês conseguiram escapar então?

- Jürgen pediu um trem para levar os suprimentos do campo para Varsóvia no front. O fuhrer havia ordenado que todos fossem executados e que o campo fosse abandonado. Já Jürgen disse aos seus soldados que as ordens eram de levar todos para a Polônia, pois as execuções seriam lá e eles iriam depois pro front. Nas proximidades de Varsóvia, Jürgen ordenou que o trem parasse para uma inspeção. Disse que queria recontar os suprimentos que estavam nos dois últimos vagões. Todos os soldados desceram e foram para o fim do trem. Um de nós desconectou os vagões de suprimentos, Jürgen trancou os soldados foi até a locomotiva e ordenou ao maquinista que seguisse. Vocês dois estavam no primeiro vagão com a mãe de vocês que cometeu o suicídio. Ela tentou matá-los, mas Isaac não deixou. O trem desviou de Varsóvia, o maquinista levou todos até Praga, já sob o domínio russo. Antes de descer do trem Jürgen pediu para Isaac levá-los consigo.

A comoção era geral enquanto o rabino continuou:

- No caminho muitos morreram de frio. Os pais de Isaac, já doentes não agüentaram. A irmã dele havia ido para outro campo e provavelmente morreu nele. Isaac nunca me disse o que realmente aconteceu no vagão de vocês, o que Jürgen disse pra ele depois de ver a esposa morta. O que sei é que Isaac trouxe Jürgen das cinzas. Jürgen renasceu assim como Lazaro, ele trouxe para fora toda a sua humanidade que aquela barbárie retirou. De nazista convicto, transformou-se. Deixou quem mais amava nas mãos de um homem que considerava um animal sem inteligência até pouco antes. A amizade deles salvou vocês, Isaac, a mim e mais quinhentas pessoas que sobreviveram naquele trem. Jürgen foi nosso anjo, Isaac foi nosso anjo.

Perdendo a voz, Ariel não segurou o choro. Algumas pessoas o ampararam para que continuasse:

- Isaac ficou com medo de vocês sofrerem. Manteve uma segunda vida para criá-los. Ele queria que vocês fossem aceitos na sociedade como o foram. Ele escondeu até a própria religiosidade de vocês para que seguissem o próprio caminho já que não eram judeus. Ele sabia que vocês não seriam aceitos entre nós. Isaac foi um herói de verdade, um mito que escondeu de todos sua grandeza para viver uma vida comum.

Igor Rykovski
Enviado por Igor Rykovski em 26/01/2012
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