ENTRE A BONDADE E A PERVERSÃO

A vida sempre nos traz alguma surpresa,

O LUGAR

Da foz do Jaguaribe na direção sul aproximadamente paralelo 4º 30’ S e meridiano 37º 30’ W, deixam-se chegar ao Cumbe, por mar tem que navegar pela barra do Jaguaribe rumando sudeste finalmente fundear a embarcação no rio observando o fluxo da maré, se a embarcação for pequena seguindo até um pequeno porto de pesca, se por terra chegar a Aracati, e seguir no sentido leste atravessando pontes e pinguelas e terras de várzeas por uma pequena estrada vicinal que dá acesso ao lugar. O vilarejo não tinha mais do que mil e quinhentas pessoas, se contasse com outra vila aos arredores mais próximo para o mar chamado de beirada somavam duas mil, o ano é de 1986. Maioria da população trabalhava com pesca: caranguejo, siri camarão e peixe, outra parte em alambiques na produção de cachaça, e outro pequeno grupo com cultivo: cana-de-açúcar, macaxeira, batata, mandioca fomentando o fabrico da farinha, pitanga, com essa fruta mulheres fabricavam licor e vendiam direto para comerciantes que negociavam com a maior cidade da região, Aracati. Quando o período chuvoso era de grande intensidade e se estendia até o mês de maio, pois o comum se concentrava em março e abril, a localidade ficava ilhada, mas ainda assim não espantava Cassiano, o nego à-toa, como era conhecido, que construíra sua casa no alto da ribanceira e podia ver abaixo o braço de mangue por onde observava todo o tráfego de embarcações. Com as chuvas intensas, que causavam inundação e transbordava os níveis mais baixos de terra alagando grande parte dessa área, sabia ele muito bem que para rever os amigos, ir aos bares, jogar cartas, e encontrar uma morena para fornicar, somente embarcado. Isto ele conseguia fazer com destreza, além de contar com um pequeno ancoradouro que se entrançava entre as árvores do mangue que ele fizera com a ajuda de um amigo, seu vizinho que também navegava, Chico da Mariá, que Costumava dar conselhos ao amigo quando estavam embarcados. Lembrava-lhe que já atingira a idade da razão já havia passado dos vinte e seis anos, alertava-lhe também que era tempo de iniciar a poupar o pouco que restasse além das obrigações pagas. Muitas vezes observava que facilmente conseguia transformar seu dinheiro em gás e que vez por outra socorria-lhe nos seus débitos. De fato era um amigo solidário, mais ajuizado e mais vivido. O que permitia então sugerir para ele uma parceira definitiva, para colocar sua vida nos eixos.

A VIDA PEDE COMPANHIA

Era sábado final de tarde, Cassiano desceu a ribanceira se encaminhou por uma viela, sentido o cheiro de mangue, seguiu próximo ao cercado da casa, que era baixa e pintada de amarelo. Pela lateral da mesma na parte mais arrasada da cerca assoviou para Maninha que estava na cozinha, se abaixou fez sinal, gesticulando com as mãos, que esperaria no bar, o centro de encontro, que tinha o nome de “Recanto do Mar”. Procurou ser discreto, para não ser visto pela avó da mocinha, Dona Baíca. A velha costumava dar dureza a quem se aproximasse da neta para se divertir, mas ele compreendia que a garota gostava de ficar com ele, estavam namorando, enquanto tivesse com ela saberia ser descente. Seguiu caminho, ao se aproximar do bar ouviu dedilhar de violão e escutou a voz de Otacílio e deu para perceber o refrão da canção “ou é só cheiro feminino ou é só cheiro de mulher”, e pensou alegre consigo mesmo “hoje vai ter viola”. Algum tempo depois Maninha chegou de cabelo preso, uma blusa lilás com o decote, que mostrava seus seios fartos, um short curto, mostrando suas coxas e com brincos enormes tendo búzios presos no final de cada argola, olhou-a de cima abaixo e disse:

“assim arrebenta nega.”

“Deixe de prosa.”

“Senta aí”

Maninha sentou, ele então se apressou para que o ajudante de Zé Valdo uma espécie de garçom, pois fazia quase todas as funções de cozinha e serviço, para solicitar um copo de vinho, pois até antes de sua chegada, na mesa onde sentara havia meio litro de cachaça, um refrigerante de laranja, um prato com uma biquara frita, uma porção de farinha, faltava algo mais refinado na sua compreensão de cavalheiro. Maninha comentou que as coisas estavam boas demais, lembrou ao paquera, e com música, melhor ainda, mas observou para que não exagerasse, ficasse naquela medida, apesar de que ele já se encontrasse alegre, mas ainda assim concordou. Algum tempo depois pagou a conta falou a ela para que devessem ir para atrás do bar. No final do galpão que encerrava a construção do recinto, havia uns arbustos, ele levou-a para debaixo dos galhos mais espessos e beijou-a com muito ardor, em seguida ele continuou as carícias insinuando querer mais, ela apenas com olhar, gestos e palavras monossílabas, deu a parecer que ali podiam ser surpreendidos e não pegava bem. A princípio ele achou que era frescura, melindre de menina mimada, mas o que fazer? Ela então com astúcia feminina explicou-lhe que gostava muito dele, mas que era bem melhor estar à vontade, sem estresse. Como na primeira vez, na casa da tia dela, quando estavam a sós e ninguém por perto para atrapalhar. Prometendo-lhe que na maré grande quando ele fosse para pesca do camarão no outro lado do rio e onde havia uma cabana que era de espera, enquanto a rede de pesca estivesse armada por certo tempo, eles poderiam então deitar na paz fora do alcance de abelhudos e só voltar quando a maré descesse, no momento de puxar a rede para o seco, que se diz “despescar” para ver o que foi pescado. A argumentação da menina parecia convincente, mais ele ainda se ressentia, pensava que já deveriam ter... Ele estava meio perplexo, mas não a desapontou. Pensava que os costumes estavam mudando, pessoas como a mãe dele que só obedeceram aos mandos grossos de seu pai estavam com dias contados, as mulheres começavam a se emancipar, mesmo num lugar pequeno como aquele que eles moravam, as novidades estavam vindo.

Ela pediu-o que a levasse para casa dela e ficar por lá um pouco de tempo, coisa de mulher honesta, nada de fazer as escuras, aproximá-lo mais de sua avó. Ao chegarem, ela abriu o portão e antes de prosseguir por um pequeno oitão, o cachorro, que era miúdo, preto com umas pintas brancas, recebeu-os latindo, ela acariciou sua cabeça e falou:

“Calma Pingüim, vá se acostumando”.

Na casa dela ao adentrarem, chegando a uma pequena sala ele sentou-se num banco de madeira bem rústico, e ela ao seu lado numa cadeira muito simples... Houve um hiato, momento de silêncio, enquanto ele observava a mesa a sua frente coberta por um plástico e entre a superfície da mesa e o plástico viu duas revistas de moda, um folheto de acompanhamento missal, um mini-dicionário e um livro de capa lilás onde ele lentamente conseguiu ler “Romeu e Julieta” edição adaptada... E um nome com sílabas estranhas para conseguir entender, soletrou alto funcionando como um quebra gelo “William Shakes...” então ela já desinibida completou:

“Shakespeare, ah sim! Foi o padre Martins que me deu na época que ensaiamos uma peça para a festa da padroeira”.

Ela já bem acomodada na cadeira que sentara, levantou o plástico e pegou o livro e quando rapidamente foliou-o ele percebeu que havia uma pequena anotação na contracapa e sugeriu que ela lesse:

“Esse amor de fervor alucinado/

foi uma lição ao rancor a indelicadeza!/

seu suplício valeu por fim ser perdoado/

por tamanha virtude e grandeza/”

“Ah! Então são versos”.

“Isso mesmo, de um soneto.”

A verdade é que na casa da moça havia um rastro de que se lia. Diferente da dele que só havia um calendário, umas poucas folhas arrancadas de revistas “sex”, ainda assim, amalgamado com outras bugigangas por cima de um armário, quando precisava saía cascavilhando.

De volta ao caminho de casa, o nego à-toa encontrou o amigo Chico que lhe saudou com prosa:

“Saíste antes do melhor, quem estava na toca do Zé Valdo cantou com Otacílio aquela do bem-te-vi, e você necas. O negócio com a gata parece que anda bom, não é mesmo negão?”

“Deixa de prosa Chico, é trabalho, ando cansado, a vida de pescador você sabe, não é fácil.”

“Falaste bem, vida de pescador. Semana que vem estaremos na busca das guarajubas, a lua já está chamando”

“Verdade, amigão.”

A PARTIDA

Passado o final de semana, na segunda-feira, pela tarde, os amigos se encontraram no Ancoradouro. Chico havia chegado primeiro. Enquanto aguardava o parceiro, pensava orgulhoso de ter aquele pequeno barco, fruto de dedicação e trabalho, gostava das cores que estava pintado; azul e vermelho, como o nome dado pelo amigo “Vaganau”, que carinhosamente chamavam somente de nau. Cada um trouxe sua “quimanga” ajeitaram os apetrechos, e certificaram: às cordas, fateixa, vela, rede, anzóis, fogão, gás, arpão, bicheiro, faca, samburá. Sutilmente Cassiano colocara ainda uma garrafa com cachaça contendo quase 300 ml, radinho de pilha que já chiava e deram com o rio a caminho da barra. Eram quatro horas da tarde quando Chico olhou seu relógio de pulso. Chico observou para Cassiano, que olhasse a bombordo uma formosura, um iate de cor branca com detalhes amarelos, fundeado num braço de mangue a esquerda da navegação considerando a direção de movimento norte para sul, precisamente entre o Fortim e o Cumbe, próximo da barra do Jaguaribe, e comentou:

“Muito escondido, hem?”

“Coisa dessa “gringada” que vai para Canoa Quebrada.”

“De certo.”

“Certa vez dei de parar na Canoa Quebrada convite feito por um casal que esteve no Cumbe, lá pelas terras dos Correias, mas quando a gente aceita e vai com eles terminam por nos tratar como cachorro, só nos querem para; melhor entender a arte de navegar, mandar a gente para comprar isso e aquilo. Ajeita isso aqui e tal, coisas de manejo artesanal e o resto é fumo, como diz o Otacílio na viola, é sociedade de classe, rico para um lado e pobre para outro” .

Finalmente entraram na barra. Navegaram poucos minutos e já era mar aberto, depois foi deixar o vento levar, tirando proveito do recalmão. Às seis horas, final de tarde, chegaram ao canto que habitualmente colocavam a “caçoeira”, a pesca de rede estava em função da lua, se distanciaram fundearam a embarcação e ficaram a pescar de linha, a uma distância razoável, um campo de visão que não desaparecia aos olhos das bóias, pois poderiam ser surpreendidos por algum esperto que levasse a rede e o prejuízo então seria dobrado, sem rede e sem peixe.

A MÃO SOLIDÁRIA

A lua já estava quase no meio do céu, os dois amigos recolheram a fateixa para cima do convés e navegaram até as bóias ao se aproximarem perceberam que a pescaria tinha sido boa, pois o pitiú foi logo sentido por eles. Recolheram a rede e viram a fartura de guarajuba preta e serra. Os dois riam à toa de felicidade, altearam o som do radinho e aqui acolá cantarolavam junto à canção que o vento trazia altos e baixos. Às dez horas da noite já estavam vencendo a barra e entrando no rio de volta ao Cumbe quando foram surpreendidos por zunido de tiros de arma de fogo, se abaixaram por trás do mastro, Chico que estava próximo do lampião a gás deixou a luz o suficiente para enxergarem o curso da navegação e perceberam atentamente que havia uma luz e vozes no iate que anteriormente haviam passado próximo... Ao distanciarem pelo canal de acesso ao Cumbe o curso ficava mais estreito e notaram uma pessoa enganchada nas raízes do mangue. A principio achavam que nada podia ser feito, mas Chico e seus princípios cristãos, entendia que não custava nada averiguar, pois ali havia uma vida. Fundearam o bote, depois de ter ficado só de calção, Cassiano foi nadando até onde estava o sobrevivente e o trouxe até a embarcação, sentindo sua respiração ofegante, balbuciando alguma palavra, era um homem gordo de aproximadamente 1,80 m de média idade no máximo quarenta e cinco anos com aparência de estrangeiro não tinha traços de cearense. Estava vestido de blusa de malha, e calça de tecido moletom, tirou-lhe a blusa e percebeu que o mesmo trazia amarrado à altura do abdômen uma espécie de cinto de lona com pequenos sacos plásticos presos ao cinto no total de oito, quatro atrás e quatro na frente, cada um com aproximadamente duzentos e cinqüenta gramas, retirou-os sem saber do que se tratava. No pescoço havia um cordão de ouro muito grosso com um medalhão que tinha a inscrição de RS, no bolso da calça uma capanga, quando abriu viu que continha muitas cédulas de dólares e também de cruzados, as cédulas encontravam-se encharcadas, bastante comprimidas. Em seguida Chico argumentou que aquilo nos sacos, só podia ser cocaína, pela consistência como se fosse açúcar, pela forma cuidada da embalagem, para evitar contato com água. Chico segurou o homem que parecia ter se esforçado muito para não se afogar, ofegava e sangrava muito pelo pescoço, olhou para o amigo e disse:

“Vamos tentar reanimá-lo”

E fez respiração boca a boca usando um plástico como proteção, o homem deu um suspiro fundo. E Cassiano falou:

“Acabou, foi que nem um bejupirá quando dá o último respiro.”

“Acho que o melhor é levá-lo a Aracati, quem sabe ainda esteja vivo.”

“Esse aí não!”

“Pensando bem podemos ancorar em Aracati, dormimos por lá mesmo e pela manhã despachar o peixe na fonte com o Antônino, afinal o gelo ainda está bem conservado, porém vamos ter que pagar algum rolador para cuidar da nau até voltarmos da pousada. Sorte nossa se o Bacó estiver por lá.”

“Está certo, vamos fazer uma boa ação”

“Exato, é vero.”

O INESPERADO NA ROTA DE TRABALHO

Mudaram a posição da vela pegaram o canal e curso para Aracati... Porém foram surpreendidos uma lancha de muito estilo, aproximou-se com muita velocidade e logo estavam abordados. Dois homens fortemente armados mandaram que arriassem a vela e encostassem o bote nas árvores do mangue. Os dois estranhos então passaram da lancha para o bote, Um deles era alto e forte usando boné e o outro baixinho com um olhar sombrio. O nego à-toa então quis conversar:

“Calma, estamos ajudando este cidadão que parece estar em apuros.”

“Calma é o cacete, fique calado nos somos da polícia civil e sabemos que estão juntos. Esse gordo estava se arranjado com vocês, para nos ludibriar, vão morrer todos dois e fazer companhia com ele”. Falou o homem que estava de boné, e mantinha uma pistola em punho.

“Mas amigos nós dois estávamos a ajudar este pobre homem já quase morto boiando no rio, com o pescoço sangrando, nos mudamos o nosso curso só para levá-lo para o hospital, acreditem! Somos pescadores no caminho de casa.”

“Pensam que nos enganam, nós conhecemos essa trapaça de pescador esperto com droga e gringo, tudo por uma ninharia e vocês levam todos pelos caminhos que ninguém transita, foi por isso que o gordo tentou escapar para não dar a nós e que é de direito e vocês numa boa iriam levá-lo até Canoa Quebrada, como o tiro saiu pela culatra ele chegou presunto então achavam que iam ficar com tudo, pois bem vão virar agora queima de arquivo e nos dar o que é nosso. "Não é mesmo Flavio?” Falou isso pedindo a confirmação do comparsa e já com o cano do trinta e oito na cara do Chico.

“Certo. Vamos em frente”

“Então, deixa que eu resolva aqui com o de bigode. Segura o nego, fica atento.” Disse o outro homem, o baixinho.

“Cadê o pó que estava com o gordo?”

“Eu não sei do que você está falando, mais se for um negócio parecido com açúcar moço eu mesmo joguei no mangue próximo do iate. Pode ser que os pacotes estejam enganchados nas árvores do manguezal”

“Ah foi mesmo, pois vamos voltar aonde jogaste se não estiver, vai rezando. Vamos todos para lancha, rápido passem para lá.”

Seguiram de volta as proximidades do iate, os quatro na lancha, vasculharam a área e nada.

“Vamos voltar para o bote deve está lá, estão nos enrolando.”

“Esses dois não sabem com o que estão brincando.”

“Bem é o seguinte: não precisam nos matar, o que aconteceu é que fomos salvar uma pessoa que avistamos que estava se afogando, que vocês chamam de gordo, que não sabíamos quem era, e encontramos com ele essa coisa que vocês tanto querem uma capanga com dinheiro e um cordão de ouro. Está tudo lá no bote menos, a tal coisa, porque entendíamos que não era aconselhável chegar ao hospital com algo suspeito, até explicarmos para a polícia...Por isso jogamos fora, mas os outros pertences estão lá são de vocês, é só pegar e irem embora e nos deixarem em paz, não temos nada haver com isso, não podíamos adivinhar que usava de contravenção, só queríamos ajudar uma pessoa em dificuldade, isso é básico na manutenção da vida, fiz isso e se for preciso faço outra vez, na minha frente ninguém more precisando de ajuda. Isso é tudo deixe-nos em paz. E querem saber mais, não tenho medo de morrer, vão cometer injustiça.” Falou o nego à-toa.

“Então é assim simples, humanitários, filhinhos da Madre Teresa de Calcutá, pensando o que, vão vomitar. Vamos até o bote passar esta história a limpo.” Disse o baixinho que essa altura do acontecido, parecia ser o mais violento para os dois amigos.

Chegando ao lugar onde estava o bote amarrado numa árvore do mangue, saíram da lancha e passaram para o convés do bote, sempre ambos apontando as armas para os dois amigos.

“Vamos dar à geral falou o homem de boné.”

Foram ao porão e constataram que só tinha peixe, pegaram a capanga com o dinheiro, o cordão de ouro, irritadamente jogaram em cima do convés.

“Bem se não querem facilitar, terão que abrir o bico a força ou morrer.” Disse o baixinho próximo de Chico.

A REAÇÃO

O nego à-toa Cassiano se mantinha sereno e muito atento, escorado ao mastro, visualizando abaixo deste bem próximo à tranca, o cabo do arpão, o bicheiro, mas sempre ameaçado pelo homem de boné que não relaxava a arma em punho. Foi quando o baixinho anunciou que acabou o tempo e que iria mandar o Chico para o inferno, já que ele não queria dizer a verdade e atirou no ombro dele, que começou a grunhir e perdendo muito sangue que saia do seu ombro. Nesse instante o outro comparsa virou as costas para Cassiano para finalizar o compadecimento de Chico, então Cassiano com a única chance que tivera como refém, rapidamente segurou o cabo do arpão com firmeza e acertou-o com a ponta do mesmo a altura do pescoço, enquanto ele sustentava a arma em punho na direção dos dois, do seu comparsa e de Chico que estava caído no convés, no impulso do golpe com o arpão que ele foi surpreendido, disparou a pistola que acertou no seu cúmplice no meio da cabeça, que cambaleou deixando a arma escorregar e foi caindo lentamente fora do bote, seu corpo quedou vagarosamente nas águas do mangue. E sem chance de reagir o homem alto de boné, atingido por Cassiano pelo arpão, fixado a sua nuca, caiu ensanguentado agonizante no convés com a pistola ao seu lado próximo ao corpo do gordo.

Cassiano se aproximou do amigo examinou o ferimento, entendeu que necessitava de cuidado, mas não era tão grave. Dirigiu-se até o porão e voltou com duas flanelas, amarou-as uma na outra e depois envolveu o ombro de Chico acima do ferimento, intencionando a funcionalidade de um torniquete. Percebeu que a bala estava fácil de ser extraída, foi até o samburá pegou a faca, higienizou-a com cachaça, recomendou que o amigo trincasse os dentes, e em seguida com mãos hábeis, conseguiu extrair o projétil. Retornou ao porão e trouxe uns panos, apoiou a cabeça do amigo e disse:

“O pesadelo acabou. Está tudo bem.”

“Amigo, joga este dois trambolhos e a pistola fora de nossa navegação, querida Vaganau, pois no mangue a maré arrasta até a barra, para dá de comer aos bichinhos de dentões, que estão com fome”. Falou sorrindo.

“Até porque o baixinho já deve está alimentando, e sua arma, a maré já está enferrujando”

“E a lancha?”

“Deixa ficar a deriva, problema de quem trouxe.”

Cassiano limpou o convés, guardou o dinheiro e o cordão preparou a vela e foi ouvido para Chico que insistia em dizer, que era muito perigoso navegarem àquela hora da noite, relembrando que o farol era um lampião a gás. Era melhor o amigo esperar o dia amanhecer e pedir ajuda. Mas ele não achou conveniente a cautela do amigo, lembrou que a lua guiaria apesar de respeitá-lo como mestre, mas não concordava, e que também aprendera a navegar com confiança, preferia levá-lo ao hospital, pois sabia que existia um risco de inflamação, além de que só um médico poderia dizer se necessitaria de maiores cuidados, e isso em tempo hábil.

“Daqui para lá eu levo esse flutuante em menos de hora e meia vou te deixar ao hospital e depois a gente já sabe o resto da história... O combinado, negociar com o Atonino. Bem esse dinheiro e o cordão é nosso, a gente não tem que ligar para advogado, polícia seja lá o que for, será mais confuso, Deus assistiu a tudo, creio então a justiça foi feita, eu não me arrependo de ter feito o que fiz, aqueles diabos iam nos matar, se não agisse a tempo... Acho que foi legítima defesa.”

Na conversa que mantinham, Chico especulava se o amigo teve um plano para reagir à atitude dos agressores... Apenas comentava que foi muito intuitivo, que nem bicho acuado, vai tentar escapulir por onde parecer mais curto... Achava sua posição estratégica, estar por trás da tampa do porão que o protegia, tinha convicção que a tacada ao agressor deixá-lo-ia sem possibilidade de movimento, e que o amigo dele provavelmente perderia algum tempo para averiguar o acontecido, tempo necessário para ele pular no rio e nadar até um canto de espreita, o que levaria o baixinho ficar com o pé atrás para eliminar o amigo Chico, pois se não o encontrasse, haveria uma testemunha, além de não perder a esperança de sempre contar com a sorte.

Já passava de meia noite, o amigo descansava quase cochilando, estava chegando a um pequeno porto no Aracati, fundeou o bote e pediu ajuda a dois roladores de barco que estavam a postos, a catraia veio e levou os dois, antes de desembarcarem na praia, Bacó que era conhecido dos dois já espreitava a chegada à praia encostou-se a catraia, ofereceu-se para transportar Chico até o hospital de Motocicleta, era o que estava disponível no momento.

Cassiano pediu ao catraieiro que o levasse de volta ao bote. Deitou-se no convés a esperar o amigo e ficou pensando na vida...

O dia estava por amanhecer quando Chico voltou do Hospital. Bacó então falou que tinham se encontrado com o filho do Antonino próximo ao hospital e que o mesmo informou que o pai fora para o Cumbe esperar pelas embarcações com peixes, não só a de vocês como de outros para abastecer os hotéis da Majorlândia, onde ele tinha muitos clientes. Agradeceram pagaram-lhe mais do que o devido, pois afinal ele foi muito prestativo, além de que Chico estava ponteado e receitado. Bacó voltou com o catraieiro e os dois seguiram de volta ao Cumbe.

A embarcação seguia rio abaixo, De longe Bacó gritou:

“Cuidado com essas mordidas”

Quando então Cassiano entendeu a graça que ele havia dito, especulou:

“O médico fez perguntas, sobre o ferimento?”

“Nada disso, tudo passou despercebido, fui só mais um indigente, que sofreu um acidente, de trabalho! É que Bacó é assim mesmo, gaiato.”

DE VOLTA PARA CASA

Assim que ficaram a sós os amigos voltaram à particularidade, a preocupação de Chico era com o percurso, poderia alguém os interpelar. Cassiano o acalmara explicando que não havia rastro tudo se acabou no mangue, eram apenas dois pescadores voltando para casa e passaram no Aracati porque um deles precisara fazer curativo num acidente de trabalho. Divagava ainda como dúvida, que o dinheiro e o cordão de ouro foram dispensados pelos os supostos policiais quando jogaram ao convés denotando falta de interesse por estes, ficava sem entender aquela atitude. Teria que haver um elo. Porém Cassiano interpretava como estratégia, para que os dois amigos entendessem a maior ambição deles nos pacotes de cocaína como resolução de serviço que prestavam, apesar de que na sua avaliação depois que tivessem os pacotes, matariam a eles dois e certamente pegariam o dinheiro e o cordão de volta, pois a raposa não pega só a galinha se puder também come os ovos. Então, agiam dissimulando que não eram policiais corruptos. De forma simplória, lembrava ao amigo apesar de não ter muito estudo, não se sentia emperrado e analisava ainda que, neste pedaço de chão que se vive, tem gente boa e ruim, sabemos disso, mas não precisa a gente ser letrado para entender, que não é de hoje que nesse Brasil tem muita autoridade que se envolve com contravenção, para ter benefício rápido sem suor e isso é desde o começo da colônia há muito tempo. A esperança é que um dia isso se acabe, mas esses que infelizmente nós confrontamos, era exatamente o mau exemplo, que também é real.

As coisas ficaram finalmente claras para Chico, então perguntou:

“Que devemos fazer com os dólares? já estamos próximo de passar pelo lugar do acontecido.”

“Ora Chico, enquanto você estava no hospital, voltei ao bote e nele permaneci, embrulhei os dólares e o cordão, como se fosse um presente para ser dado a alguém que merecesse, amarrei com uma pedra e mandei aos peixes, só deixei os cruzados que foi o saldo, há,há,há!”

“Será que dá para fazer alguma benfeitoria com esse dinheirinho”

“Quer saber, pagamos Bacó e o catraieiro, sem mexer no nosso bolso.”

“Agora entendi, o significado de saldo.”

“Bem certo que saldo sempre ajuda, há, há, ha!”

“Tenho comigo outra pergunta, curiosa.”

“Homem, somos amigos, faça!”

“Ok! Diga-me: você lembra que o baixinho chamou o outro parceiro de Flávio?”

“Ah... Agora lembro você me refrescou a memória.”

“Então se não me falha a... Eu creio que conhecia aquele cabra.”

“Deveras?”

“Deveras.”

“Então, vai ver que por isso quiseram lhe eliminar primeiro, e depois a mim com maior pressão já tendo o amigo morto”.

“Hum! Faz sentido.”

“Mais um motivo para não termos sentimento de pena.”

“Talvez de compaixão.”

“Você é mesmo cristão.”

De volta ao canal, sentiram o cheiro de mangue, bom sinal, estavam próximo de casa. Chico sentiu firmeza, compreendeu que sua paranóia passara, tudo estava como antes, e que provavelmente no futuro os pacotes de cocaína, a lancha, o iate, as armas, os corpos seriam encontrados e estariam ligados a um crime com drogas e mistérios.

“Acho que maninha tem um macho porreta ao seu lado.”

“E Mariá não tem um também não?”

“Sabe Chico a última vez, que estive com maninha na casa dela, havia um livro em cima da mesa, ela falou que foi o padre Martins que lhe deu, o livro conta aquela história da peça que foi apresentada para nós lá na igreja, a tal história de Romeu e Julieta.”

“Abre o olho nego à-toa, a menina além de bonita tem estudo.”

“Verdade, eu vou me esforçar e ler aquele livro todinho.”

“Há há há, para o bom entendedor meia palavra basta.”

Chico ligou o rádio animando a manhã para os dois na nau, mas o rádio já apresentava sinais de pilhas desgastadas, não tocava do mesmo jeito de que quando saíram do ancoradouro, apesar de que, ainda dava para relaxar, e ouviram com emoção a canção da vez:

”Bem-te-vi como um verão.”

Omar Botelho
Enviado por Omar Botelho em 21/01/2012
Reeditado em 29/08/2015
Código do texto: T3453656
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