HERESIA NO TRAVESSEIRO

A mãe, aos oitenta e cinco, em posição fetal, enrosca-se na cama e olha um ponto fixo no horizonte. Até as meninas dos olhos estão paralíticas... É triste a gente se saber tão pequeno para acompanhar a terminalidade, alguém sussurra na sala. Cadê o rosto iluminado da liderança dentro da família, o dizer palpiteiro pra tudo que chegava e o colo generoso, magnânimo para filhos e netos, filharada da vizinhança e irmãos de mediunidade, no Centro Espírita, durante mais de 50 anos... Quanta esperança e caridade distribuídas a mancheias... O vestido de rainha da terceira idade é o amuleto que resta pendurado no guarda-roupa. Há cerca de oito anos, em indumentária ousada, indiscreta, rodopiava, brejeira, nos salões, e até sobre a mesa, e celebrava a alegria com algumas cervejas... A boca, agora, é um ricto de lábios que se assemelha a um figo ressecado, pois, retirada a dentadura, ficou o carcomido dos estragos. O riso sardônico se avizinha e tudo em volta é asséptico e oracular. O sincretismo convive em São Jorge, Jurema Flecheira e Iansã, água batizada de Iemanjá e flores, num singelo altar ao lado do leito. Só a TV resiste ligada como se por ela pudesse surgir a boa-nova das descobertas da medicina... À porta, contritos, expectantes olham de soslaio a dimensão humana em sua finitude. Cada dia é uma vitória sobre Dona Morte, que se mantém em vigília ao objetivo. O mesmo vigilar que os cuidadores de plantão têm pela vida. É uma dialética tensão o desafio do viver e morrer longevo. O que justifica o sofrimento do pequeno núcleo em torno da centelha final, se não a crença de que há algo além desta vida... E haverá mais a fazer enquanto não houver o chamado? O Cristo redivivo parece responder e evoca dois milênios de ritos e práticas e continua identificado: INRI. O rei dos excluídos... Parece que os soberanos só são humanos depois de mortos. Que rei sou eu, aparentemente crístico e tão sacrílego para o sofrimento? O perjuro afoga a heresia no travesseiro e antevê a sombra, de soslaio. E eis que o bruxo metido a esculápio bate à porta, balançando o estetoscópio. Um santo de gesso cai do irrisório altar...

– Do livro SORTILÉGIOS, 2011/12.

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