ALMA RESSEQUIDA
O policial jogou o jornal dobrado dentro daquela cela lotada, aberto na página em que havia uma notícia acompanhada da foto de uma bela mulher que um dia aquele prisioneiro disse ter amado. A manchete estava em letras garrafais, na primeira página do Caderno de Polícia: MORTE POR AMOR. A página continha algumas gotas da chuva fraca que caía lá fora quando o jornaleiro deixou o jornal na porta da penitenciária e se foi na sua velha bicicleta.
Matias é um dos soldados que estavam de guarda naquela manhã de quinta-feira e foi quem apanhou o jornal, que normalmente é levado para a recepção. Ironicamente, jogou-o naquele lugar para que Humberto lesse a reportagem que relatava um acontecimento do dia anterior. A notícia impressa, no entanto, já era de conhecimento de todos naquela cidade pequena e até então bastante tranquila. Lajeado de Cima é uma cidade com pouco mais de dez mil pessoas. É daquelas cidadezinhas em que as pessoas à tarde se assentam no banco da praça para poder jogar conversa fora depois da missa diária. Ali o tempo parece ser bem mais devagar que em qualquer outro lugar. O relógio da bela matriz, em estilo gótico, assemelhando-se às grandes catedrais da França, parece nunca se mover. Ali o tempo não tem pressa, a vida passa devagar tal quais as águas do ribeirão manso que corta o lugarejo. É possível ficar observando os pássaros na praça e os pombos, muitos, sempre pendurados na torre da igreja.
No entanto, o dia anterior tinha sido atípico. Humberto lia o jornal e se deu conta do mal que tinha feito à sua esposa e também a si próprio. Ele frequentava os bares da cidade cotidianamente e quase sempre chegava embriagado em casa. Lívia, sua esposa, era mulher amável e atenciosa com todos. Não eram mais jovens, e os filhos, três, moravam todos fora de Lajeado, e um deles, inclusive, é casado e tem filhos. Ninguém nunca ouvira rumor algum de desentendimento entre os dois. Agora se sabe que ela sempre sofrera todo tipo de violência verbal, desconfianças de um marido traidor que dava ouvidos a todo tipo de calúnia feita por seus companheiros de copo. Havia sempre insinuações de que sua esposa estava com alguém. Coisas de cidade miúda.
Humberto saiu do bar e foi para casa naquela noite de quarta-feira mais cedo. Lívia havia ido visitar sua mãe, adoentada e voltava para sua casa, quando se encontrou com o marido embriagado interrogando-a onde ela estava. A pobre mulher, que quase nunca ia a lugar algum, exceto visitar a mãe doente e às missas dominicais, não teve tempo de responder. O homem enfurecido pelos comentários, logo a imaginou vindo da casa de um amante, e sem ouvir a sensatez, que agora todos sabem que lhe falta, desferiu golpes certeiros com seu canivete na mulher que ele dizia amar. Entorpecido e atacado de cólera, deixou ali mesmo, na esquina de sua casa o corpo inerte da mãe de seus filhos que não o querem ver, menos ainda perdoar. Atormentado por pensamentos flutuantes de quem está embriagado e igualmente solto de sua própria razão, cometeu o que não queria, assinou sua própria sentença de morte, desferiu o golpe fatal em si mesmo e assassinou também sua alma.
Abre agora a notícia no jornal e depara-se com a foto dela. Não contém suas lágrimas que fazem companhia aos respingos de chuva no papel. Seus colegas de cela apenas olham. O homem enlouquecera de arrependimento e chora compulsivamente sob o efeito de sua ignorância. Já não há mais o que ser feito. Destruiu a si mesmo e à sua família. Condenado eterno às dores do arrependimento e do crime estúpido, prisioneiro de sua própria consciência e martirizado pela sua própria alma. Eis o que se passa na mente daquele homem ao ver o sorriso de Lívia, na foto do jornal, tirada no dia em comemoravam o nascimento do primeiro neto.
Humberto pensa em não suportar a dor de causar dor a alguém. Um conflito irreversível e uma ferida de canhão aberta na sua alma condenada ao exílio do mundo e à solidão em si mesmo, encerrado no cárcere de seus sentimentos. Enquanto lê a notícia e os detalhes dos quais ele queria esquecer mas que eternizados estão naquele documento, Humberto viaja no tempo e fecha os olhos um instante para tentar sentir a doçura dos beijos de Lívia e suas carícias sempre oferecidas ao seu rosto suado e cansado do trabalho, mesmo após a embriaguez diária. Ah Lívia! Perdoe essa alma destroçada e esse coração agoniado que somente ao deixar de bater para se sentir aliviado. Cada movimento do coração é como uma punhalada no seu peito, tal qual a dor de Prometeu acorrentado ao Cáucaso. Um sofrimento eterno, sem complacência alguma, uma morte que perambula pela Terra.
Sentou-se ao chão da cela fria, ouvindo agora o barulho da chuva que a esta altura estava a lavar a cidade, talvez lavar o sangue inocente de Lívia, derramado na esquina da ignorância, como a levar o resto de si para as águas que fluem eternamente no seu ciclo de renovação. Humberto morre a cada dia, esvazia-se de si mesmo e se mata aos poucos de desprazer. Água nenhuma lhe lavará a alma, eternamente carcomida pela culpa tão grande, pelo dissabor conquistado e pelo perdão negado. Restou-lhe apenas a cela fria, a chuva torrencial, a solidão infindável e suas lágrimas. Estas, até que um dia seu corpo seque, a exemplo de sua ressequida alma.