QUANDO ENXERGA O CORAÇÃO

A primeira lágrima rolou quando vi seu rosto pela janela do ônibus. Marcos

partiu para longe em busca de trabalho. Deixou como lembrança um sorriso tímido, talvez forçado ou ensaiado por horas. Ele deixava a pequena Vila de São João do Livramento para ir morar a mais de mil quilômetros daqui onde um tio lhe conseguiu um trabalho. Ainda pude ver seu adeus até o último momento em que minha visão alcançava naquela esquina em que não mais o vi. Eu desabei num choro misto de saudade e felicidade ao vê-lo em busca de seus sonhos.

Hoje acordei cedo, com o barulho da chuva e a correnteza do rio em minha alma. Era um barulho suave, mas que me fez voltar no tempo e relembrar as cenas em que ele brincava na rua, cercando a enxurrada e soltando barquinhos de papel. Já se faz dois anos e quatro meses que Marcos se foi e apenas nos falamos pelo telefone, uma vez por mês. Ele está feliz e diz que já tem até uma namorada, mas também diz sentir muita saudade de casa e dos dois irmãos que ainda estão comigo. Ainda, porque aqui na vila, todos precisam sair após os estudos básicos, pois não há espaço para os filhos dos pobres, que precisam procurar meios de vida em outros lugares. Quase todos se vão.

Chego à janela de casa e olho as montanhas ao fundo. Elas sempre nos permitem olhar para o alto e perceber a beleza do dia e do azul do céu, mas hoje, me faz enxergar o cinza que esconde o brilho do dia, tal como minha alma se tortura em saudade do filho distante. As águas do céu misturam-se às águas dos meus olhos e provocam grande enxurrada em mim. Olho o riacho que corre ao lado de nossa casa. Ele compõe um belo cenário junto às montanhas e árvores que cercam a sua margem direita. A ponte de pedra, desde anos ali ligando minha rua ao outro lado da cidade, me serve de inspiração, em que partes podem ser unidas e que rios que dividem também podem ser domados.

Sinto falta de meu filho, de quando ele chegava em casa após as aulas noturnas, faminto e ia remexendo tudo o que havia por perto. Era um barulho poético, que me acordava do sono ainda em espera até que ele comigo estivesse. Cada ruído me fazia brotar um sorriso, e numa revirada para o lado eu dormia o sono das mães despreocupadas. Hoje esse sono em espera muitas vezes me agoniza noites adentro pensando se meu menino está alimentado ou se dorme em paz. Sinto falta da poesia do fogão noturno e do canto das panelas que soavam baixinho para não me acordar.

Sempre que olho a rua lembro seu último olhar e seu último adeus. E fico contemplando o céu desta terra que abrigou-nos juntos e pensando no dia em que os filhos não mais vão se separar das mães para nunca mais irem para o mundo. Havemos que os criar para ele, mas o mundo não cuida de nossos filhos como a mãe cuida. As margens abrigam os rios e os guiam pelo caminho as águas que correm cantarolando para o mar. No meu peito um aperto de saudade doída, uma lágrima sempre nova no olhar, uma saudade observada todos os dias quando o ônibus passa pela ponte e não para no ponto onde um dia, Marcos partiu.

Manhã chuvosa, um vento frio passando pelo meu corpo, anunciando uma noite carregada de insônia e de desejo de rever meu querido menino. Perco-me nos meus pensamentos tantos, olhando sempre as montanhas que enfeitam nossa linda e pequena cidade sem progresso e sem asfalto. Ao longe, pelas encostas das montanhas, um barulho vindo da estrada anuncia a chegada do ônibus que traz as pessoas que foram cuidar da vida na cidade vizinha. Vejo apenas a chuva caindo e o carro de relance. Sempre meu coração palpita e eu fico esperando a surpresa inconcebível da chegada de Marcos, sem aviso prévio, com seu largo sorriso. Súbito, o ônibus entra na cidade, atravessa a ponte e para. Desce um jovem, calça jeans e blusa azul, óculos escuros e uma mala média. Meus olhos lacrimejam e o coração pulsa magnânimo dentro do meu peito cansado de sentir saudade. Minha miopia misturada às lágrimas tentam enganar o olhar de uma mãe esperançosa da chegada daquele que vai completar o vazio do coração deixado no dia de sua partida.

Saio à porta apressada e preparo o abraço ensaiado. Eu não tenho dúvidas. É ele. É ele de volta para meus braços e de volta para seu quarto ainda conservado do mesmo jeito. Não consigo dar mais que um passo, estática e paralisada que fico de tanta emoção. Ele vem com passos lentos, um sorriso de felicidade, quando de repente uma moça, que logo reconheço, Júlia, que mora a três casas da minha lhe dá um abraço forte. Desfaço-me em prantos e minhas mãos trêmulas quase não conseguem segurar meu corpo junto à parede. O moço me abanou a mão e entrou feliz na casa de sua noiva. Meu coração foi fraco, deixou que meus olhos se enganassem novamente. Instantes depois, testava eu dentro do quarto, coração apertado, olhos em cachoeira, tentando reconfortar meu coração que olhou com os olhos da alma e viu a sua realidade invisível.

Amanhã novamente vou recostar os braços na janela e observar, esperando a surpresa prometida por Marcos para qualquer dia, que meu coração diz ser a sua volta a qualquer momento, mesmo que ele continue dizendo que ainda não. Mas mãe né...

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 24/11/2011
Reeditado em 25/11/2011
Código do texto: T3353021
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