O CÃO DE JOSIAS

O CÃO DE JOSIAS

“Só existe neste mundo um

ser mais solitário do que

um homem solitário;

é o seu cão”.

J

osias vinha todas as noites depois das nove. Vinha pela ladeira da estação, comprida, de paralelepípedos desiguais como os de todas as ruas de cidades do interior. Sentado à mesa do bar, na praça idêntica às de todas as cidades do interior, eu o via apenas quando estava já em meio ao trajeto, pois àquela hora uma cerração subia das bandas do rio. Uma cerração que de um dia para outro se tornava mais fria. Estava-se em fins de maio. Breve chegaria o inverno.

Apesar de vê-lo todas as noites, ainda assim sua aparição me sobressaltava. Ele surgia de repente, sob um foco de luz amarelada. E vinha, de foco em foco de luz, com suas passadas lentas, apesar das pernas compridas. Sua sombra magra dançava nos espaços iluminados e escuros. Trazia os ombros curvados, como se carregasse algum fardo. No braço esquerdo, um guarda-chuva, que agora me parece, tenho até a certeza, de jamais ter visto aberto, embora tivéssemos tido chuva algumas daquelas noites. O mesmo terno azul-marinho, certamente sua única roupa, ruço pelo uso. Camisa branca, de punhos e colarinho puídos. Sempre os mesmos sapatos, tão surrados, dos quais não se ouvia mais nenhum ranger ou bater de saltos no passeio. O chapéu cata-ovo, bastante afundado na cabeça, ocultava-lhe a parte superior do rosto. Divisava-se, a distancia, apenas uma linha quase invisível que era a boca, sob um nariz comprido e ligeiramente adunco. As faces eram baças, com uma barba rala e clara, mas sempre curta, nunca de mais de três ou quatro dias.

A principio eu não notara o cão. Agora é que, forçando a memória, revivendo aquela imagem diária, é que tenho a certeza de que o cão esteve sempre junto dele. É que o cão vinha pela rua, mas pela parte escura, mais atrás às vezes, de outras junto aos muros, entrando e saindo dos terrenos baldios, parando nas latas de lixo, cheirando e esmiuçando tudo.

Josias vinha sempre assobiando. Era um assobio único. Hoje, ao tentar lembrá-lo, não consigo reproduzir sequer uma nota, nem identificar nenhuma das canções, se é que existia alguma. Só tenho uma certeza: era mais do que um assobio – era um lamento. Um profundo lamento. Só consigo compará-lo ao tocar de um realejo.

Ao chegar à porta do bar ele já não assobiava. Não me recordo tampouco se ele dizia alguma coisa ao balcão. Sei que ele tomava vinho, porque eu tomava a mesma coisa, um vinho branco da região, bastante bom, e aconteceu de o patrão nos servir ao mesmo tempo algumas vezes. Demorava-se de meia hora a quarenta minutos. Não falava com ninguém, ninguém olhava para ele ou lhe dirigia a palavra. Fumava. Ao terminar, enfiava a mão no bolso e sempre deixava uma nota trocada junto ao copo vazio. Num minuto já não estava mais ali. Ouvia-se apenas o

assobio triste a se perder pela praça pouco iluminada e quase deserta. Eu ficava ainda uns minutos a pensar nele, mas depois

minha atenção voltava-se novamente ao jogo de cartas que alguns fregueses habituais levavam a termo todas as noites, até o fechamento do café.

Certa noite, Josias não veio. Eu tinha à minha frente um copo de vinho pela metade. O quarto ou quinto talvez. Como o patrão, debruçado ao balcão, olhava o jogo. Eu estava de costas para a porta, a chupar o cachimbo, com as pálpebras já meio pesadas. Fazia mais frio que as noites anteriores e eu levantara a gola do sobretudo, cobrindo as orelhas, e mantinha o chapéu. Ainda assim, fui o primeiro a perceber. De repente, eu sentira que alguém adentrara o recinto, embora nada tivesse ouvido. Voltei-me instintivamente. Não era uma pessoa. Era um cão. O cão de Josias. Fiquei um instante com o pensamento em suspenso, tentando achar o que havia de errado na cena. Então, olhei nos olhos do cão. Eram os olhos mais tristes que eu jamais vira. Ele deitou-se, pôs a cabeça entre as patas e ganiu baixinho. Os homens pararam de jogar. O patrão levantou os cotovelos do balcão. Todos nós olhamos para o cão e olhamos uns para os outros, sentindo a mesma coisa. Nada foi dito. Não era preciso. Movemo-nos ao mesmo tempo em direção ao cão, e ele levantou-se e saiu do bar. O patrão desceu as portas e nós seguimos o cão através da névoa, pela praça, descendo a ladeira em direção à estação. Ninguém dizia nada. Os outros, porque parecia terem esperado sempre por aquilo. Eu, por ser um estranho.

Chegamos à estação. Atravessamos as plataformas de embarque, passamos pelos armazéns, e fomos em direção ao pátio de manobras, através de uma cerração mais forte. No silencio da noite ouvíamos já o marulhar do rio, as uns quinhentos metros além. O cão nos guiava.

Josias estava lá, num velho vagão abandonado. Estava encolhido, sentado, com a cabeça entre os joelhos, como o seu cão ficara lá no bar. Sob a luz da lanterna que o patrão levara, um dos homens levantou seu rosto, sob o velho boné de ferroviário. Estava tranqüilo. O patrão me deu a lanterna para segurar e se afastou para ir chamar a polícia. No foco, eu via Josias e o seu cão, ambos em idêntica posição. Desliguei a luz.

Fora um ataque cardíaco, afirmara o médico ao primeiro exame. Fulminante. Enquanto a viatura do necrotério não chegava, e como todos ignoravam a minha presença, fiquei examinando o refúgio daquele homem e ao mesmo tempo captando fragmentos das frases trocadas pelos outros.

Josias tinha sido ferroviário. Maquinista. Perdera a mulher ainda cedo, ao nascer a primeira e única filha. Criara esta até aos dezoito anos, quando, tuberculosa, morrera. Josias deixou a ferrovia, não conversou nunca mais com ninguém a não ser o estritamente necessário. Deixou a casa de propriedade da ferrovia, ao lado da linha, um pouco fora da cidade, para ir viver naquele vagão abandonado. Não pedia nada a ninguém. Ninguém pedia ou exigia alguma coisa dele. Todos respeitavam sua maneira de existir.

Foi sepultado no dia seguinte, à tardinha. Ao acompanhar o cortejo, deixei-me ficar atrás, cedendo a frente àqueles que haviam convivido com ele. Os da terra. Como na noite anterior, senti que alguém estava às minhas costas. Voltei-me. Era o cão de Josias. Não ocupava o lugar, que por direito lhe cabia, junto ao caixão. Também não entrou no cemitério.

À noite, estávamos de volta ao bar. Os homens jogavam às cartas e o patrão os observava. Eu não. Sentado a cavaleiro numa cadeira, próximo à porta, eu aguçava os olhos, tentando furar a névoa, além da praça. E ele veio. Pela ladeira comprida, sob os focos de luz, balançando o corpo magro, como o dono. Chegou até a porta do bar, entrou, levantou o focinho, cheirou a todos. Ninguém o notou, como também não notavam o Josias.

De súbito, levantou as orelhas, arregalou os olhos, virou-se e saiu, cruzando a praça aos saltos e, descendo a ladeira, perdeu-se na neblina. Nunca mais foi visto.

Levantei-me e fui até a porta. Não sei se, por efeito do vinho branco, julguei ter ouvido um assobiar profundo e triste, como um lamento, como o som de um realejo. O assobiar mais triste que já ouvi até hoje.

Deve ter sido o vinho branco. Sentei-me, agora de costas para a porta, levantei a gola do sobretudo, apertei mais o chapéu sobre a cabeça, sorvi lentamente um gole do vinho branco, e acendi o cachimbo que se apagara.



vsm/sp - outono / 1971 otelo.rocha@gmail.com

Este conto faz parte do acervo do programa “Talentos da Maturidade” do Banco Real.