MINHA FADA, MINHA MUSA, MINHA AMADA

MINHA FADA, MINHA MUSA, MINHA AMADA.

Nunca aquela escada me pareceu tão longa.

Nunca demorei tanto a vencer alguns degraus.

Venci-os, enfim, e cheguei ao patamar superior. E no patamar, junto à porta do teu quarto, tua mãe, magra e triste, sempre vestida de cinza e negro. Não nos dissemos uma palavra, e nem era preciso. Ela me chamara. A teu pedido. Olhamo-nos por um instante e ela afastou-se, sempre silenciosa nos passos miúdos, os quais também eram os teus. Segurei entre as mãos a maçaneta da porta do teu quarto, que até então jamais abrira. Hesitei por uma eternidade, e nessa eternidade te vi pela primeira vez. Teus olhos verdes, tuas mãos finas, teus cabelos dourados, tua face branca. Teus lábios, teu corpo. Vivi todos os momentos nos quais te vi. Ouvi a tua voz e até senti a tua dor. Cerrei os punhos, abri a porta e entrei no teu quarto.

Aguardei que meus olhos se acostumassem à penumbra reinante. Vislumbrei, por fim, destacado entre os móveis escuros, o perfil branco do teu leito. Do teu leito de morte. A sombra do teu noivo saiu da obscuridade, avançou até a réstia de luz que se coava pela porta. Fitou-me. Fitei-o. Saiu e fechou a porta.

Estamos sós. Estamos juntos e sós, pela primeira vez, minha fada, minha musa, minha amada.

Meus pés estão pregados ao chão. Não sinto o meu corpo. Faço um esforço e aproximo-me. Dormes o prelúdio da morte. Sinto a velha parca ao teu lado, à espera, silente e paciente. Eterna paciente.

Tua face é ainda mais branca e meus dedos por ela correm e traçam suas linhas, como se a esculpissem ou a desenhassem. Ou recolhessem seu desenho. Meus dedos mergulham no Sol dos teus cabelos e os acariciam, pela primeira vez. Como são macios!. Como eu os imaginava que fossem. Teus lábios, antes rosados, agora estão rubros, e ardem em febre. Toco-os com os meus, também pela primeira vez, e depois nos teus olhos, cerrados. Sob as pálpebras, tremulam. E, lentamente, os verdes se abrem, tão verdes como eu jamais os vira! É o mar onde muitas vezes imaginei, mas nunca pude navegar. Balbucias, tão baixo que precisei juntar meus ouvidos à tua boca. Tua voz, antes cantilena, é agora um sussurro ofegante, apressado, rouco. Dizes-me que finalmente eu tinha vindo! Que atendera ao teu chamado. Que eu estava ali, perto de ti! Que tinha vindo para ficar! E pedes que eu não me vá. Que eu fique sempre contigo! Que eu nunca vá embora!

Sim, minha amada, eu vim para ficar e nunca mais te deixarei.

Teu hálito é quente e minhas lágrimas também.

Perdoa-me, estou molhando a tua face.

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O céu estava todo azul, lavado por uma rápida e morna chuva de primavera. Os pinheiros verdes, balouçando à leve brisa, as lápides brancas e as cruzes destacavam-se na claridade radiosa de uma tarde linda como tu. Não fui à tua frente nem ao teu lado. Não segurei a alça do teu caixão. Não levei nenhuma flor.

Foram-se todos.

Tua mãe, mais cinza e mais negro; teu noivo, teus irmãos, teus amigos, o padre.

Foram-se os coveiros, os jardineiros, os faxineiros, e também o administrador.

Cerraram-se os portões.

O sol foi dormir atrás do Jaraguá. Foi-se o azul do dia. O céu ficou alaranjado, depois violeta e em seguida azul escuro. Os pinheiros, as lápides e as cruzes misturaram-se à penumbra e fundiram-se com a escuridão.

Uma lua cheia, grande e brilhante, inundou de luz prateada o vasto campo santo, e no manto da noite, estrelas piscavam, curiosas e talvez atônitas, sem nada entender.

O cadeado rompeu-se fácil e a argamassa, ainda fresca, fez com que os tijolos saíssem também sem muito esforço. A laje era fina e leve. Afastei-a.

Eu prometera que nunca mais iria te deixar.

E despi minh’alma do meu corpo. E tomei tua alma e vesti-a em meu corpo.

E finalmente, para todo o sempre, estamos juntos e sós.

Pela primeira e última vez, estamos sós, infinitamente sós, minha fada, minha musa, minha amada!

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vsm/sp - outono / 75