Um sustinho só


Uma descarga de adrenalina tomou conta de seu corpo e seu coração ficou tão acelerado que ela imaginou-o rompendo o seu peito e pulando fora. Sentiu a tremedeira habitual nas pernas e teve medo de não conseguir reagir, mas apoiou-se contra a parede em busca de firmeza e logo teve certeza de que daria conta de enfrentar o que tivesse de ser enfrentado. Estava escuro, mas seus olhos se arregalaram e ela percebeu que as sombras que via se moviam lentamente e os vultos se definiam claramente como se ela tivesse uma visão de raios x. Sentiu que o sangue fugia de seu rosto e os pelos de seu corpo se arrepiavam o que certamente não faria nenhuma diferença para os que tentavam assustá-la. Seus pelos eram finos e macios e não a tornavam apavorante como se fosse uma macaca assustada. Mas havia algo que certamente assustaria até as sombras ocultas atrás do arvoredo: seus cães. Ao lembrar-se deles sentiu um gostoso conforto, o sangue voltava ao seu rosto e ela se virou silenciosamente e caminhou em direção a porta dos fundos. Abriu - a  e os viu, seus cães de quintal, todos já a postos, prontos para agir. Um leve sinal fez com que todos disparassem latindo, atravessando o portãozinho sempre aberto, rumo ao outro lado da rua, onde um espesso arvoredo servia de esconderijo para aqueles que pretendiam assustá-la. Logo se ouviu pela noite os gritos apavorantes dos moleques que saíam a noite em busca de aventura. Depois daquela primeira noite, outras tentativas aconteceram, mas agora ela nem se dava ao luxo de soltar os cães. Apenas os instigava a latirem e logo ocorria a debandada. Aos poucos foram desistindo e ela pôde viver tranquila naquele lugarejo perdido no fim do mundo. Mas tinha que confessar – gostava de sentir medo. Fazia-a se lembrar de quando era menina, das experiências que vivera, quase todas  junto a avó. O arrepiante homem que a avó apontara na rua como sendo um lobisomem, o cavaleiro da meia noite que ela esperava de olhos arregalados nas noites insones e a impressionante girafa gigante galopando pela linha férrea e que fizera as duas, ela e a prima, a baterem todos os recordes de velocidade e que só não está no Guinness porque ninguém cronometrou. Foi quando teoricamente aprendeu tudo sobre o medo, teoricamente, é claro. A avó lhe disse que o medo era precedido do susto e que este desencadeava todo um processo em nosso organismo que culminava na grande decisão: entregar-se ao medo e borrar nas calças ou enfrenta-lo, mesmo que esse enfrentamento fosse a fuga. Pernas, para que te quero? Sempre enfrentara, de uma forma ou outra, até aquela noite, quando percebeu apenas uma sombra rondando do outro lado da rua, saindo do escuro arvoredo graças ao brilho da lua. Estava com medo, muito medo e sem saber o que fazer. Alma de minha avó me dê proteção, gritou em pensamento, bem sabendo que para a avó, seja lá onde estivesse, essa seria a única forma de pedir ajuda – em pensamento. Bem, pode-se dizer que a avó ouviu porque ela sentiu que a fuga seria impossível, era preciso ir ao combate, buscar a sombra para encontrar a luz. E ela foi, sozinha, sem chamar nenhum de seus cães. Embrenhou-se pelo escuro arvoredo parando abruptamente ao ouvir um pequeno murmúrio. Lá estava ele, perdido na escuridão da noite, aquele que seria o seu companheiro daí para frente: um pequenino schnauzers que ela acolheu nos braços enquanto ele encostava a cabeça em seu ombro, tranquilo e feliz. Ora, ora ela disse toda feliz: foi um sustinho só. E esse foi o nome que ela deu ao cachorrinho – Sustinho – o barbudo mais charmoso que ela conhecera desde que passara a paixonite por Che Guevara.







Esse exercício faz parte do desafio do Encanto das Letras, sugestão do Pedro Galuchi. Leia os outros autores em http://encantodasletras.com/umsusto.htm
 
 ( Trecho de A Mulher Ensombrada)