Rabisco do amigo

Se você está lendo isso provavelmente gostava do meu trabalho ou, na pior das hipóteses, gostava de mim. Calma, calma... é só que eu não me gostei em todo esse tempo. E, acredite, viver consigo mesmo é uma tarefa difícil – são poucos os que conseguem.

Contarei aqui a história de um jovem bem parecido com você. Seu nome? Bernardo, João, e por fim Perdù. Ninguém jamais conheceu seu nome verdadeiro, a não ser ele mesmo. No início era chamado de Bernardo, então comecemos por aí.

Bernardo nasceu em uma cidade relativamente pequena e vivia no orfanato da cidade. Era órfão de pai e mãe, mas tinha um tio que morava na cidade vizinha. Sua única amiga se chamava Isabella. Você deve ter ou pelo menos deve saber o que é uma amizade verdadeira, e a amizade deles era assim: pura como as fontes de um rio intocado pela mão do homem e de tamanha verdade quanto tudo o que seu olho pode ver.

Quando ia completar dez anos de idade, sua amiga o convidou a ir ao esconderijo que eles criaram. Era uma casinha de madeira que não tinha nada dentro (a não ser uns papéis jogados, lápis de cor espalhados e um pequeno lampião). Ficava no terreno baldio ao lado do seu lar. Aquele era o seu refúgio, o lugar em que sonhos transbordavam e seu coração não temia a mal algum.

Já era noite quando os dois entraram pela pequena porta e se sentaram no chão – um ao lado do outro. Isabella arrumava o cabelo castanho, que caía sobre seu rosto, enquanto suas mãozinhas vasculhavam os bolsos da sua jardineira. Pegou a goma de mascar que estava ali e colocou depressa na boca. Bernardo coçava a cabeça, bagunçando o cabelo negro.

- Desculpa, Bê, mas eu só tenho essa. Você quer um pedaço? – olhava, com os olhos castanhos e arregalados, o amigo.

- Não, Isa, tenho paçoca aqui. Você gosta de paçoca? – sorriu.

- Gosto, mas gosto mais de pipoca.

Bernardo pegou um papel e começou a desenhar. Isabella continuava mastigando a goma sem pensar em nada, e ele os desenhou. Estavam em um lugar verde, de mãos dadas, e pareciam gostar de estar ali.

- É pra você, Isa. Um dia a gente vai sair daqui e poder cair na grama, sentir o vento e até ter um cachorro. Eu gosto de cachorros.

- Mas, Bê, hoje é o seu aniversário. Eu não fiz nada pra você. – abaixou a cabeça.

- Não tem problema, ta bom? Você já está aqui comigo, ó.

- Hum...

- Ah, não fica assim não. Daqui a pouco a gente tem que ir embora.

- É, eu sei. – continuava de cabeça baixa. – Lembra quando você disse que ia embora quando fizesse doze anos?

- Lembro sim, mas eu não fiz ainda.

A garota levantou o rosto e passava as mãos sobre as lágrimas que escorriam.

- Eu não quero que você me deixe aqui sozinha.

- Eu volto pra te buscar. Confia em mim. – a observava angustiado. – Eu prometo.

- Eu confio, mas tenho medo, Bê. – se levantou.

- Aonde é que você vai?

- Está na hora da gente ir. – não olhou mais o amigo.

- Espera, Isa. – ergueu-se do chão e segurou a mão da amiga. – Tem uma coisa que eu quero te dar. – pegou um colar dentro do bolso da calça. – Eu queria que você usasse. Eu ia dar pra minha namorada, mas ainda não tenho uma. Gostaria que ficasse com ele até eu voltar. Ta?

A pequena soltou um riso e foi logo o abraçar. Voltaram para o orfanato esperando que o amanhã fosse melhor que o hoje, e que o depois de amanhã fosse melhor ainda. E foi assim até seus doze anos chegarem.

Chegou. No dia de sua partida, arrumou em uma mochila suas roupas e pertences, deu adeus baixinho aos amigos e ao chegar perto da sua melhor, não disse nada. Só a fitou por um breve momento e na escuridão da noite fugiu.

Você pode até não entender, mas aquele dia foi o único, - repito – o único em sua vida toda, em que ele soube o que é coragem. Sabia que estava sozinho, que não seria nada fácil, mas acreditava que sua vida seria melhor longe das coisas que o faziam mal.

Começou pedindo carona até chegar à cidade vizinha. Ali, andou por vários minutos procurando a casa do seu tio. Levava consigo a foto de uma cabana que, apesar de pequena, parecia ser aconchegante. Mais a frente achou a cabana que via na foto e parou.

Seu tio, um homem velho mas robusto, com o rosto fechado como um cadeado, abriu a porta para o garoto.

- Quem é você?

- João, seu sobrinho.

- Mas não era Bernardo?

- Era, mas agora é João.

- Você é meio doido, moleque. – disse – Entre.

João entrou por aquela porta e só saiu após cinco anos. Aprendeu muitas coisas com o tio e sofreu com ele também. Seu hobbie favorito era lutar com o velho, utilizando galhos secos como espadas e o próprio braço como escudo. Eles tinham dias bons, mas em sua maioria esse dias eram ruins.

Quando os cinco anos passaram, o último diálogo com o tio martelava em sua cabeça:

- Você ta louco, garoto?

- Olha só, eu não quero mais isso. Não quero ficar preso aqui o resto da minha vida, sério.

- Faça como seus pais e vá embora também.

- Preciso ficar longe do que me faz mal. Preciso me encontrar.

- Eu te dei comida, garoto. Te dei abrigo. Por que vai fazer isso?

- Eu to pirando aqui, ta bom? Agradeço tudo o que fez por mim, mas basta.

- Se sair por esta porta não volte mais, nunca mais!

- Sim, senhor.

- Bastardo!

Saiu e não mais voltou. Das traseiras dos caminhões descobriu novos lugares, conheceu muita gente e viu que o mundo era bem mais do que imaginava. Começou a dormir em meio à relva, fazendo das árvores o seu teto, da grama seu colchão e da chuva seu chuveiro. Às vezes ficava caminhando dias e dias, até parar em algum lugar que o agradasse. Tomava banho em rios e lavava suas roupas ali também. Teve sua época de passar tempos em hotéis ou nas casas de mulheres desconhecidas, mas não ficava por muito tempo. Gostava mesmo de ficar em meio a natureza, sentindo-se um revolucionário da paz e viciado em erva – não que sejam coisas relacionadas, era apenas seu modo de ver.

Perto dos vinte anos, com a barba grande e cabelos também, foi se banhar no lago que ficava na cidade que estava visitando. Observava seu reflexo: “Preciso ficar longe do que me faz mal, mas o que me faz bem? O que eu sou? Por que ainda estou aqui? O que querem de mim?”. Seus pensamentos se confundiam enquanto sua mão se aproximava da água. Uma folha caiu sobre ele fazendo com que voltasse à realidade.

De longe, ouvia barulhos de objetos sendo arrastados, grunhidos de animais e pessoas conversando. Saiu rápido da água e foi colocar suas vestes. Seguiu os sons de mansinho, até que parou atrás de uma árvore. Era um circo.

- Ei, cavaleiro, o que faz observando meu reinado?

Um menino, de mais ou menos seis anos, cutucava suas costas com uma espada de brinquedo. João, por sua vez, se virou e encarou o pequeno.

- Diga-me, senhor, o que faz observando meu reinado? Você é um mensageiro?

- Não, guri, não sou nada.

- Como assim nada? Então você é um ladrão?

- Sou apenas um viajante, digamos. Mas sei usar a espada, então, se você quiser, travaremos uma batalha.

- Se me concede essa honra, Viajante Perdido, lutaremos.

João pegou um galho na árvore mais próxima e se colocou em posição de lutador com a maestria de um cavaleiro medieval.

Os dois começaram a lutar. João, com toda a certeza, era mais hábil que o garoto, mas deixava o mesmo pensar que seria o vencedor. Com um belo golpe, fez com que o menino caísse no chão. Encostou sua espada – feita de madeira – sob o queixo dele e disse que havia sido uma bela luta.

Quando olhou a seu redor, vários artistas circenses o observavam.

- Desculpem, só estávamos brincando. – estendeu a mão a seu adversário e o levantou.

- Tudo bem, nós assistimos a luta. – um homem bem vestido apareceu entre os demais. – Você é bom nisso.

- Obrigado, senhor. Já faz um tempo que não pratico. Pra ser sincero, nunca peguei uma espada de verdade na mão. Deve ser uma beleza.

- Sei, sei. Você mora aqui, rapaz?

- Eu moro em qualquer lugar, senhor. Não tenho moradia fixa. Amanhã já devo vagar por aí novamente.

- Bom, meu jovem, estamos pensando em fazer um novo número. Será como uma pequena história, um teatro, e, por fim, haverá uma disputa entre dois cavaleiros. Se você quiser, pode se juntar a nós. O que acha?

- Eu não sei. Não gosto de ficar preso a um lugar, entende? Sou um nômade.

- Nômade? Está parecendo um hippie. – soltou um riso. – Pense bem... somos uma grande família circense. Na época em que vivemos, somos os maiores nômades que você virá a conhecer. Nossos espetáculos já viajaram por esse país todo. Você faria parte disso, viajaria conosco e conheceria muita coisa interessante. Caso você não goste, pode partir quando quiser. Precisamos de um novo artista e você precisa de um novo lugar.

O pequenino observava sorridente para João enquanto os artistas transmitiam esperança em seus olhares. Era como se ele fosse os libertar ou até ajudá-los de um modo que nenhum outro faria.

- Tudo bem, eu vou.

Se ele fez a escolha certa? Creio que sim. É aquela coisa que as pessoas dizem: “Só me arrependo do que faço”. Faz sentido. Se não tivesse ido, talvez essa história não estaria sendo escrita agora. Mas voltando ao que interessa...

Sua estadia no circo durou sete anos. No início sentia-se um estranho no meio de gente mais estranha ainda. Porém, com o passar do tempo as coisas foram se ajeitando. Cortaram-lhe a barba e cabelo, fizeram uma pequena cerimônia para que ele fosse apresentado à todos e o chamaram de Perdù, o Cavaleiro Viajante. O ensinaram como manusear uma espada de verdade e como prender a atenção de uma platéia inteira. Disseram-lhe que as palmas seriam a coisa mais valiosa que poderia conquistar e, se suas atuações fossem magníficas, um dia poderia criar sua própria história e apresentá-la do modo que quisesse.

Os meses passavam enquanto descobriam lugares novos, tiravam risos da platéia e os espetáculos terminavam com a melodia das palmas. As lonas eram seu céu, as lâmpadas, dos mais diferentes modelos, seu sol, e na hora do seu show, o mundo se transformava em um carrossel de emoções.

As peças que Perdù apresentava começaram a ficar famosas. A cada cidade que chegavam, uma nova história era criada, um novo sonho era resgatado e uma esperança era construída. As pessoas se viam nele, choravam com ele, riam e sentiam o que ele sentia. Sua maquiagem no rosto era branca e suas vestes impecáveis. Por vezes usava ternos ou, quando a história pedia, armaduras.

Ninguém falava com ele antes do show. Enquanto se olhava no espelho, suas crises começavam e ele tentava conviver com sua loucura, mas no final tudo acabava bem – no cigarro, no baseado ou na bebida.

O circo ganhou fama por causa do seu show e quando o rapaz estava próximo dos vinte e sete anos, deram à Perdù a chance de mostrar ao público o que ele quisesse. Pediu, então, que arrumassem a garota mais bela do circo para contracenar com o mesmo. Também solicitou um espelho grande e uma espada nova, que fosse real o suficiente para cortar um homem. Os palhaços apareceriam logo após a apresentação e finalizariam o espetáculo.

Chegou o dia tão esperado. Tinham ensaiado por um bom tempo e todos estavam prontos. A notícia de que o espetáculo seria apresentado em sua cidade natal, fez com Perdù caísse em si. Em todos os anos, desde que saiu do orfanato, jamais pensou que voltaria. O bom filho a casa torna? Que nada. Sentiu medo de vê-la. É, é... ver a garotinha - que agora devia estar um mulherão!

A cidade era pequena então era provável que Isabella fosse ver o show. Um pequeno segredo que descobri é que, em todas as suas apresentações, ele a via na platéia. Uma alucinação que usava o colar que havia ganhado do amigo e sorria, sem mais nem menos. Mas, voltemos ao espetáculo.

Os shows começaram, o riso se fazia audível e os “ooh’s” da platéia enchiam o coração dos artistas. Perdù ficava olhando de esguelha a multidão, tentando encontrar sua amiga; até que a encontrou. Uma mulher sorridente deixava o pescoço à mostra, para que um belo colar aparecesse. Vestia um vestido estampado em flores e o cabelo ficava preso por uma presilha em forma de borboleta. Viu que ela tinha uma aliança em seu dedo e que ao seu lado estava um homem e uma criança. Pasmo, tentou mudar a direção do seu olhar, mas só consegui fazê-lo quando a atriz, que contracenaria com ele, o cutucou.

- A nossa apresentação começa daqui meia hora, será que você pode se vestir?

Atônito, selou os olhos por um momento e foi em direção ao seu trailer.

Chegando lá, começou a se despir ao mesmo tempo em que procurava seu smoking. As ideias giravam em sua mente: “Ela se casou? Por quê? Ela disse que me esperaria. Talvez meu lugar não seja aqui. Não posso vê-la partir e ela não vai me perdoar por ter demorado tanto tempo. Preciso de um lugar novo, preciso de um lugar novo!”. Já vestido, se olhava no espelho tentando encontrar algo para se concentrar. Pegou um disco e colocou na vitrola.

Don't worry about a thing, 'cause every little thing gonna be all right… Ah, sua música favorita! Sentado, ouvia a canção enquanto a fumaça da erva se espalhava. Lágrimas escorriam em sua face até chegar nos lábios sorridentes. Pegou um papel e começou a escrever. Mais adiante, passou a maquiagem branca no rosto e desenhou, abaixo dos olhos, uma única lágrima com um lápis preto. Colocou sua espada na bainha e se olhou, pela última vez, no espelho. Sua face não transmitia mais nada: nem tristeza, nem alegria. Estava pronto.

A história seria um musical e falaria sobre um cavaleiro (Perdù) que se apaixonou por uma princesa (Lisa). Esta já estava prometida à outro homem, bem mais poderoso. O coração da princesa pertencia ao cavaleiro. Os dois se encontravam e se amavam loucamente, mas o casamento da moça se aproximava. Ela partiria para um lugar distante e Perdù ficaria ali. Prometeu que voltaria, mas ele não acreditou. Seu amor era doentio e não suportaria a ver partir. Se fizesse algo, poderia ser mandado embora do reino ou ter a cabeça decepada. O final da história? Você saberá mais adiante.

O silêncio cobria a tenda e a escuridão tomava conta do circo, até que o refletor de luz iluminou Perdù e Lisa no centro de tudo. Seu show havia começado.

As atuações estavam sendo magníficas. Os dois pareciam eternos apaixonados e a concentração deles era incrível. Um show como ninguém jamais viu, seja em um circo ou em um teatro qualquer. Era o seu momento, era o seu dia, era o seu fim. Em seu momento de glória, seus olhos caíram sobre Isabella. O roteiro ensaiado começou a ser jogado no lixo e ele começou a cantar algo que não estava escrito. Estava parado no centro, como no início, enquanto sua parceira estava caída no chão, aos seus pés. Fixou o olhar na amiga e as palavras e melodias saíam da sua boca.

Pois bem, eu tentei fugir,

Lavei as minhas mãos

E ceguei até meus olhos

Pra não ver meu ser partir.

Minha voz estúpida

Calada está

Já me emudeci,

Antes de você lembrar

Que o tudo passa e vira nada,

Que o nada é tudo e mais ninguém

Entrará no seu lugar, pois bem!

Eu não sei, eu não vou

Quero tirar os nãos

Mas o que eu quero mais

É ficar a sós com a imensidão do meu ser

Que é tão pouco, é tão pouco..

Eu tentei me encontrar na solidão de mim,

Tentei achar algum lugar pra ficar.

Mas preciso conhecer algo mais que isso aqui

Preciso de um novo lugar pra ser, estar.

Conhecerei o inimaginável

E a imensidão do céu,

Ficarei entre as estrelas

Mesmo que sinta o gosto de fel.

Criarei a melodia da minh’alma

Rente aos sentimentos que me dedicou

Serei uma águia viajante

Reviverei tudo aquilo que já passou.

Serei tua paz,

Serei tua vida,

Serei a chegada, o adeus

A partida.

Serei mais do que sou;

Pelo menos dessa vez,

Serei.

Ao completar sua sequência de versos retirou a espada da bainha, olhou para sua parceira e sorriu. Abaixou-se até ela e lhe estendeu a mão, tentando a levantar. Ela sorria e o abraçava com força. Logo depois, ele a beijo na testa e selou seus próprios olhos, enquanto Lisa partia para viver com seu futuro marido. Perdù pegou a espada e preferiu a atravessar em seu coração do que sentir a dor de vê-la partir.

O sangue escorria ao mesmo tempo em que seu corpo deslizava devagar. Seus olhos ainda estavam abertos e as luzes já iluminavam toda a tenda. As pessoas ficaram boquiabertas com tal interpretação. “Esse sangue parece real, não?” “Maravilhoso espetáculo, foi muito bom!” “Ele se matou por ela, que coisa triste...” Eram as expressões que se ouvia na platéia juntamente com as palmas. Os palhaços entraram em cena e dois pegaram Perdù e o levaram pra fora.

Seus olhos se fecharam e ele já estava conhecendo um novo lugar. Depois dessa apresentação todos conheceriam seu trabalho magnífico (pena que ele não estaria mais aqui para aproveitar).

Mas que saber? O que importa é esse rabisco aqui deixado. Estou pensando na coragem, no medo e na nova viagem. Que maravilha conhecer o que ainda não foi conhecido, que maravilha saber que não somos donos de nada e de ninguém. Que uma hora tudo passa, até nós mesmos...

Se você está lendo isso provavelmente gostava do meu trabalho ou, na pior das hipóteses, gostava de mim. Calma, calma... é só que eu não me gostei em todo esse tempo. E, acredite, viver consigo mesmo é uma tarefa difícil – são poucos os que conseguem viver sem viajar na sua própria imensidão.

Abraços do amigo, Ézio.

Agnes Gomes
Enviado por Agnes Gomes em 05/09/2011
Código do texto: T3201902
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