O VELÓRIO

O velório

Nas invernias cariocas as opções de vida social, que já eram mínimas, no subúrbio de Irajá tornavam-se mais insustentáveis. O frio umedecido regado por gélidas gotículas mansas acumuladas nas copas das árvores deixava as pessoas prisioneiras em suas casas, entregues a uma boa literatura de romance policial ou contos e crônicas. Essa estação parecia boa para a morte, nesses dias de frio intenso a capela mortuária, localizada no centro do bairro ficava lotada de defuntos e vivos. Entre os que iam velar seus mortos havia um pequeno grupo de roqueiros que não tinham nada a ver com os finados e mesmo assim todos os sábados marcavam presença, vestidos de preto pelos cantos como verdadeiros guardiões imaginários a representarem as delimitações entre a adolescência gótica conflitante e o adulto recém chegado em suas primeiras representações.

No cenário fúnebre, ao lado da paróquia local, ocorreram os mais inusitados episódios no cotidiano do Irajá. Eu pessoalmente conjeturo e concordo plenamente com Wild quando diz que nem a ficção possui tamanha absurdez de fatos como as vezes nos mostra a dura realidade da vida. Eram exatamente vinte e três horas. As pessoas se espremiam dentro da capela que fazia meia parede com a igreja. As quatro alas lotadas, cada uma com um cadáver em sua urna, poderiam seguir em paz com suas pompas se não fosse o fantástico episódio que abalou todo aquele bairro simpático de pacatos cidadãos. Entes e amigos velavam os seus mortos com imensa tristeza. Talvez no fundo de tanta dor todos sabiam que mais cedo ou mais tarde também estariam ali, diante do inevitável vexame da fatalidade humana, digna de toda a compaixão alheia.

Bandejas percorriam o espaço oferecendo café e biscoito. Ao lado da porta, da parte de fora, um grupo grande de pessoas sublimava a situação contando piadas, comportamento tradicional nos velórios suburbanos do Rio de Janeiro. Até aí imperava a normalidade. Só que diante da revelação de uma das viúvas a coisa ganhou um outro desfecho. Ela estava inconsolável diante do finado marido deitado no caixão entre as flores. De repente se abaixou como se fosse beijá-lo e sussurrou em seus ouvidos: - Perdoe-me por te trair cinco vezes! Ao se recompor uma lágrima caiu do seu olho e adentrou em um dos orifícios da narina do defunto. Ele pigarreou. A viúva pensou estar sendo acometida por leve alucinação.¨ Onde é que já se viu morto pigarrear ?¨ Em seguida ela passou a alisar o rosto do finado e ele esbugalhou os olhos. O choque foi tanto que a viúva acabou atirada no chão em desmaio. Quando os demais se voltaram para o lado que ela estava viram o morto sentado no centro do caixão, entre as flores. De repente alguém gritou: - O morto levantou !

Houve clima de horror e correrias. Na confusão caixões, defuntos e flores foram atirados no chão e depois pisoteados. Uma parte da multidão invadiu a igreja buscando proteção espiritual. Outra parte fugiu rumo a avenida principal em direção contrária ao cemitério da praça e logo provocou engarrafamento. No meio do alvoroço um taxista anunciou: _ Um morto ressuscitou ali na capela!!!

Gente abandonou o carro e em fuga se juntou à multidão.

O padre foi acionado. Pegou o terço, chamou o médico e entraram na capela. Lá encontraram o ressuscitado num canto encolhido, apavorado e em lágrimas. Com a presença do padre e do médico algumas pessoas se aproximaram. Depois de um breve exame o médico deu o diagnóstico:

_ Catalepsia!

Nisso o irmão do ex-morto ao entrar na sala e vê-lo em tremedeiras expressou confuso:

- Lá...Lázaro, você voltou?!

O padre e o médico se entreolharam e murmuraram ao mesmo tempo:

_ Làzaro??!!!

O médico sorriu, o padre fez o sinal da cruz e Lázaro e o irmão se abraçaram em prantos.