NOTURNO DE CHOPIN
                    Um noturno de Chopin varria as folhas avermelhadas de plátanos que se despiam para a chegada do outono. Paris deve estar muito Renoir nesta época, o que me faz lamentar esse meu coração que insiste em permanecer Hiroshima logo depois da bomba.
                    Até há pouco eu estava feliz, tinha seis anos de idade e estava fazendo o que mais gostava: jogar bola com os amigos na calçada da frente de casa. Ela havia me chamado várias vezes para tomar banho que, nesse dia, sábado, devia ser mais cedo. Imprudentemente, ignorei os chamados e continuei na brincadeira, até porque meu time vencia e eu estava sendo o goleador.
                    Anoiteceu e o jogo chegou ao fim. Cautelosamente entrei em casa e examinei a área. Tudo livre. Corri para o banheiro e tranquei a porta. Tendo tomado o banho imaginei que Ela ficaria feliz, teríamos um belo jantar aquecido pelo fogão a lenha e depois eu dormiria na cama cheirosa e confortável que Ela preparava para mim todas as noites.
                    As coisas, entretanto, dificilmente aconteciam na forma dos meus desejos. Bem que Ela ficava repetindo que eu era muito sonhador, mas isso não vem ao caso agora. O fato é que a toalha não estava no banheiro e isto era mau sinal. Entreabri cuidadosamente a porta e chamei uma das minhas irmãs mais velhas. Da cozinha ela perguntou-me o que eu queria e pedi-lhe a toalha. Tranquei novamente a porta e aguardei. Alguns minutos depois minha irmã pediu que abrisse a porta para me alcançar a toalha e, ao fazê-lo, fui empurrado pela força da porta que se abriu abruptamente. Cai no chão do banheiro e Ela entrou com o relho de couro na mão. Seus olhos faiscavam e o pavor tomou conta de mim, pois eu conhecia muito aquela expressão transtornada de ódio. Ainda pedi que deixasse vestir uma roupa, mas Ela ignorou meu pedido e começou a bater. O medo superava em muito a dor das batidas que deixavam sulcos porejando sangue. E se ela fosse além do habitual? Eu não resistiria e morreria ali, no chão úmido do banheiro. Medo, mas também havia um desejo de que isso acontecesse. A vida não tinha sentido sem o amor dela e agora Ela não estava me amando. Haveria, ainda, uma outra vantagem: se eu morresse Ela perderia o meu amor e eu então estaria vingado, pois Ela jamais seria tão amada por quem quer que fosse nesse mundo.
                    Mas ela parou e eu não morri.
                    Quando Ela saiu, permaneci deitado e encolhido em posição fetal, sentindo a mais profunda tristeza que até então já experimentara. Meu coração despedaçado pela bomba de Hiroshima não tinha capacidade para entender por que tudo aquilo acontecia: eu a amava tanto e fazia de tudo para agradá-la. Alguma coisa estava errada comigo, no meu jeito de ser, mas eu não conseguia descobrir o que era. Eu queria mudar, mas não sabia o quê deveria ser mudado. Crescendo, talvez eu fosse compreender e, aos poucos iria mudando para ser como ela gosta. Um dia, por certo eu seria merecedor do amor dela e meu coração deixaria de ser Hiroshima para ser um campo coberto de girassóis sorridentes como a figura da revista que minha madrinha me empresta quando a visito.
                    Logo minha irmã entrou no banheiro, ajudou-me a vestir o pijama de pelúcia e carregou-me para o quarto. Deitado, olhando o céu estrelado pela fresta da janela, parecia que meu corpo não tinha dimensão: difundia-se pelo espaço sem qualquer limite e tudo o que eu sentia era uma imensa tristeza e uma pontinha de dor na boca do estômago. Então estendi longamente o braço e apanhei no céu uma estrela miudinha que fica logo acima das Três Marias e que eu chamo de felicidade e fui colocando ela devagarinho dentro do peito. A tristeza foi saindo, saindo e voltei a sentir meu corpo de novo. Estava cansado e começava a longa viagem de um menino perdido num enorme campo de girassóis.
 
Nelson Eduardo Klafke
Enviado por Nelson Eduardo Klafke em 24/08/2011
Reeditado em 31/03/2013
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