Insana veisalgia insone: um conto sobre o Andejo e Parténope

Ele bebera bastante na véspera. Churrasco de domingo com amigos: futebol, videogame, muita carne e muita cerveja. Até aí tudo dentro da normalidade.

O dia seguinte foi terrível (como todas as segundas-feiras costumam ser), a ressaca era indescritível, a dor de cabeça característica estava particularmente forte, além de uma falta de apetite e enjoos atípicos. Trabalhou o dia todo no modo "piloto automático", fazendo tudo mecanicamente e comunicando-se por monossílabos e/ou gestos. Foi uma manhã longa. Aos atropelos chegou o fim do expediente e, como estava deveras afetado por todos esses malefícios, resolveu não almoçar, sabia que qualquer coisa que ingerisse seria violentamente repelida e isso, fatalmente, faria mais mal do que bem a ele.

A tarde deve ter sido complicada, por assim dizer, amnésia, ele não lembrava de nada desde que saíra do trabalho.

Quando tornou a si era noite, estava vagando, andara a esmo por algumas horas em ruas que nem ao menos sabia o nome. Mas, não obstante a isso, sentia-se bem, sentia que não estava sozinho, tinha plena certeza da companhia de uma mulher, uma linda mulher que constantemente lhe sussurava ao ouvido, cantarolando coisas sem nexo, fatos, mitos, lugares, direções, saídas, soluções, cantarolando como uma sirena às avessas, mostrando-lhe a luz ao invés das trevas, guardando-o das pedras no caminho. Como disse, andaram durante muito tempo e durante horas e horas ela lhe cantou muitas histórias, algumas com finais felizes, outras não, lendas e mais lendas, fatos há muito ocorridos e fatos que talvez ainda estivessem por acontecer. Assim seguiram a noite.

Ela, Parténope, estava sempre à sua destra. Ele, Andejo, sempre extasiado. Calado. Absorto. Inebriado por aquela beleza não visível, impalpável, perceptível apenas por sentidos não físicos, por assim dizer, dotada de uma sensualidade (e sexualidade) que o envolvia por completo, que o levava a mundos distantes, os mesmos mundos das histórias recém cantadas, despertando desejos e sensações que ele nem ao menos sabia que existiam. E, não mais que de repente, o silêncio. Ao término desses cânticos, de súbito, veio-lhe à mente o que Kafka dissera sobre as sirenas:

"As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: seu silêncio"

Silêncio.

E foi como se despertasse de um sonho, Parténope desaparecera, se fora, ele estava sozinho em pé diante da porta de casa. O mal estar desaparecera quase que por completo, o último infortúnio que ainda o acompanhava era o sono. Entrou... Tomou banho... Deitou-se... Tentou dormir... Dormiu... Enganou-se, em verdade, apenas imaginou que dormia, em dado momento percebeu, que estava acordado, com os olhos abertos e ardendo, devido ao tempo que os manteve desse modo, sem perceber. Aí, segundo consta, começou a pior parte desse dia: a insônia, a causadora de tudo que estaria por vir.

Logo ao perceber que estava acordado surgiu o incômodo de estar na mesma posição há bastante tempo, mudou de posição, deitou-se de bruços, cinco minutos, deitou-se de costas, mais cinco minutos, de lado, mais cinco minutos e assim foi. A noite continua impassível e um leve desconforto muscular sentido no decorrer do dia piorou com a repentina febre. A febre aumentou bastante, foi quando os delírios começaram.

No início eram apenas passos no corredor que morriam na cozinha (e vice-versa), copos e talheres que se chocavam e até a porta da geladeira batendo. Isso acabou com qualquer possibilidade/tentativa de dormir. Os delírios aumentavam proporcionalmente à febre, logo estava ouvindo pessoas conversando e o chamando pelo nome, estava tudo ficando muito mais real. Alguém girou a chave na porta da frente e entrou, passou pelo corredor, parou em frente à porta entreaberta do quarto, olhou e continuou até a cozinha. "Isso já é demais!", pensou ele. Levantou-se mas, tiritando como estava, não conseguiu manter-se totalmente ereto ao caminhar, andava de cabeça baixa, fitando o chão, conseguiu chegar a cozinha e ver alguém junto à porta dos fundos. A interlocutora (ele percebera que era uma mulher) gritava coisas ininteligíveis e, agressiva, atacou-o. Ele ainda estava de cabeça baixa e só podia ver até os joelhos da mulher. Dando dois passos para trás, ele conseguiu segurar-se à uma cadeira, que foi agarrada e levantada em uma investida ao rosto de quem o atacava. Nesse ponto conseguiu levantar-se e ver o rosto de sua mãe. De imediato, percebeu que, na verdade, estava levantando o rosto do colchão: ainda estava deitado na cama.

Seguiram-se brigas e discussões acirradas, quedas de objetos, mas ele não se levantou mais. Começava a sentir o corpo de outra maneira, meio abstrata, meio sinestésica, misturando os sentidos em orgias de muitos corpos que, no fim, eram apenas um: o seu próprio. Coisas desse tipo continuaram no decorrer de toda a madrugada até que, para seu alívio, a alvorada chegou. Foi como se tivesse sido libertado de correntes imaginárias trazidas pela escuridão e pelo medo. Agora estava livre. Um banho frio aliviou a febre, as dores no corpo amenizaram também. Vestiu-se. Saiu rumo ao trabalho. Sentiu um afago e um sussurro junto ao ouvido: Parténope voltara.

Abraçou-a longamente, deu-lhe um longo beijo e pensou: "estou salvo".

Ledo engano, era apenas o começo...

Magno Brito e Silva
Enviado por Magno Brito e Silva em 24/08/2011
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