DOLORES (final)
Desceu da cadeira e sentou novamente na cama. Procurou a xícara de chá e tomou um longo gole. A respiração estava ofegante, sentia medo, queria chorar, queria descer, queria fechar a porta do quarto para sempre. Eugênio havia lhe mentido. Pela primeira vez havia descoberto uma mentira de Eugênio. Não havia arma nenhuma. Anos e anos com medo de mexer na prateleira mais alta do roupeiro sem qualquer razão! Mas não era isso que importava. A mentira sim. Eugênio havia lhe mentido! Quantas vezes? Sobre o quê? Seria apenas sobre o revólver? Desta vez não conteve a lágrima que mansamente rolou do olho esquerdo. Sentia dor. Ou era tristeza? Não sabia muito bem distinguir. Pegou a xícara, apagou a luz, saiu do quarto e se dirigiu para a escada. Alívio ou apreensão. Resgate ou abandono. Renúncia ou liberdade.
Parou no topo da escada, engoliu a saliva para desatar o nó da garganta e voltou ao quarto. Havia escolhido: alívio, resgate, liberdade.
Sentou-se na cama e colocou a caixa sobre os joelhos. Para sua surpresa, ela não estava chaveada.
Abriu a tampa devagar, novamente com a sensação de culpa, como se estivesse violando algo sagrado.
O revólver estava dentro da caixa.
Afinal, Eugênio não mentira. Sentiu-se envergonhada pelo julgamento apressado que fizera e experimentou uma doce onda de ternura percorrendo-lhe o corpo, enquanto lembrava o sorriso compreensivo do marido.
Já ia fechar a caixa quando percebeu que havia uma ponta de papel colado na parede. Tentou puxá-lo, achando que era apenas um retalho perdido, mas não conseguiu. Retirou, então, o revólver da caixa e puxou o papel com mais força. O movimento fez com que o fundo da caixa se movesse para cima e deixasse ver que era um fundo falso. Com cuidado, continuou puxando o papel até que o fundo se desprendesse a revelar seu conteúdo.
Dolores prendeu a respiração: eram cartas! Eram fotografias! Era um mundo obscuro que se abria, repentinamente, para a realidade. Talvez pudesse ser uma realidade que se abria para um mundo obscuro. Eugênio com uma menina no colo, aparentando três anos. Eugênio abraçado a uma mulher desconhecida. Um bilhete com letra infantil dizendo Papai, eu te amo. Tô com saudade. Milena. E mais, muito mais. Eugênio num outro mundo! Um outro homem com a cara de Eugênio! Declarações de amor, fotos de lugares desconhecidos, felicidade vazando de papéis. Pilhas de documentos dolorosos e reais, a provar o imponderável, o inacreditável.
Mais uma vez Dolores repassou a vida com Eugênio num filme de trinta segundos. As cenas eram as mesmas, mas já não havia poesia nelas. As ausências tornaram-se maiores do que lembrava e tudo passou a ter explicação sob uma outra ótica. Lacunas foram fechadas. Já não precisava fingir-se de cega para compreender a vida. Não precisava mais continuar vivendo para manter vivos os personagens de uma vida insossa, desenrolada nos bastidores e longe dos refletores. Havia cumprido seu papel, mas não ouvia aplausos. A dor que sentia na boca do estômago era uma dor aguda, profunda, desesperadora. Tinha vivido para nada.
De novo a angústia da decisão: alívio ou apreensão; resgate ou abandono; renúncia ou liberdade.
Sentiu-se impotente para decidir sobre morrer ou viver. Como vingança extrema, colocou em Eugênio a responsabilidade pela decisão. Apontou o revólver para a cabeça e pensou: se a arma estiver carregada, Eugênio será um assassino; se estiver descarregada, Eugênio morre, por não te sido competente para manter meu amor por ele.
E acionou o gatilho.
Dolores nunca tinha prestado atenção quando Eugênio, falando sobre a arma, teorizava sobre a inutilidade de ter guardada em casa uma arma descarregada.
Fim