A Filha
- “O bom filho a casa torna” – disse Alfredo, ao abrir a porta.
Com um sorriso, Pietro abraçou seu irmão, de forma carinhosa. Era nítida a emoção dos dois. Anos se passaram desde o último encontro.
- Como tem passado rapaz? – perguntou Alfredo, com um misto de curiosidade e incredulidade. – Não esperava te ver novamente.
- Nossa, que otimismo! – disse Pietro, rindo, enquanto entrava na sala e colocava a mala no chão. Seus olhos atentos revistaram cada canto da sala. As paredes conservavam o mesmo branco amarelado desde a sua infância. As cortinas azuis esvoaçantes estavam no mesmo lugar. Tudo parecia estar como sempre, mas algo havia mudado. Seria ele ou a casa? O que estava mudado, Pietro não sabia responder.
- Quem está aí? – perguntou uma voz feminina, que Pietro sabia ser de sua mãe. – Pietro! - exclamou Lúcia, com uma expressão de incredulidade semelhante à de seu irmão. – Pietro, meu filho – disse, enquanto corria para abraçar o filho, que sorria com o espanto dela.
- Parece que ninguém estava me esperando. – falou o rapaz, com um ar tristonho.
- E não estávamos! – confirmou sua mãe
- Mas eu avisei que viria. Eu enviei uma carta, só não sei se...
- Assim como fez inúmeras vezes. – falou uma voz masculina, interrompendo o rapaz. Com o coração aos pulos, Pietro reconheceu a voz de Armando, seu pai. – Você fez isso sempre, e nunca apareceu para nos ver.
- Nunca tive oportunidade, papai. – defendeu-se Pietro, que se mostrava insatisfeito com a aparição de seu pai. – Eu não pude vir.
- Não precisa me explicar. Você sabe que não me interessa. – disse o homem, com um sorriso irônico. Após dar uma olhada rancorosa ao filho, Armando saiu, dando as costas para todos.
- Eu não sabia que ele estava aqui. Não esperava ter que encontrar esse homem de novo. Ninguém me avisou nada... – falou Pietro, com uma melancolia estranha.
- Oh, querido, não se preocupe! Seu pai não está trabalhando fora mais. Há uma semana, ele voltou para casa. – disse Lúcia, sorrindo, tentando animar o filho. – Com licença, meninos, vou ver o almoço. Irei caprichar, meu querido Pietro, fique tranquilo. – e retirou-se, demonstrando um ar de alegria.
Respirando fundo, Pietro sentou-se no sofá marfim da sala, o que lhe trouxe boas lembranças, e, inevitavelmente, lhe pôs um sorriso no rosto, que apresentava um ar ingênuo.
- Rindo de que, menino? – indagou Alfredo, que também sorria.
- De nada, meu querido irmão, de nada.
Alfredo olhou o rapaz com simpatia, com amor. Para ele, Pietro será sempre aquele menininho de short, correndo pela casa, puxando a cordinha de seu caminhão de plástico, com um sorriso doce e sincero. Olhava o irmão com encanto e ternura, vendo cada momento da infância, mesmo que Pietro não carregasse mais nenhum traço daquela docilidade infantil em seu rosto sofrido.
Pietro, ainda sentado no sofá, olhava para a casa a sua volta com um sentimento estranho. Tudo o que ocorrera ali, durante os cinco anos em que se ausentara, era alheio a ele. Agora ele era uma visita, um estranho no local, e isso lhe causava um grande mal estar.
Desde o momento em que saíra da sua casa, essa era a primeira vez que ele voltava ao local. Depois de decidir sair dali, ele havia optado por nunca mais se aproximar da casa. Aquele lugar era a representação de dores e angústias, medos e ansiedade. De tudo o que lhe fizera tanto mal. Ele, definitivamente, odiava aquela casa. Estava ali a pedido de sua mãe e de seu irmão, que Pietro amava tanto.
Tinha vinte e três anos quando partiu. Não havia mudado nada na aparência. Cabelos pretos e olhos azuis, ainda conservava o mesmo tom claro de sua linda pele. Era um rapaz muito bonito. Quanto ao seu interior, Pietro passou por mudanças drásticas. Ganhara experiência e maturidade. Seu sorriso não conservava mais a alegria que ele tinha na infância, mas agora era uma máscara para os sentimentos que carregava dentro de si.
Quando decidiu deixar sua família, não foi porque quis, e sim porque se viu obrigado a isso. Ele nunca se dera bem com seu pai, mas tudo começou a ficar intolerável quando ele fez 20 anos. Naquela época, ele ainda não entendia o motivo da hostilidade do pai.
- Você é um inútil, Pietro! Você, sua mãe e seu irmão não servem para nada! Três desgraças em meu caminho! – gritou o pai uma vez, enquanto discutiam.
- Será que nós três somos o problema? Ou será que é você? – desafiou o rapaz e, sem que tivesse tempo para se defender, sentiu um peso sobre o olho direito, uma dor alucinante e sangue jorrando. – Aprenda a me respeitar, seu moleque, ou lhe mostro quem sou eu. – disse Armando, e saiu com um ar triunfante.
Desde esse dia, Pietro via o pai como um inimigo, e o mesmo acontecia com Armando.
- Calma, meu filho, seu pai anda nervoso por causa do trabalho. – falou Lúcia, tentando consolar o rapaz e acalmar a situação, enquanto fazia curativo no rosto de Pietro.
Até hoje, não entendia o porquê de sua mãe defender tanto seu pai. Será que só ele via o caráter duvidoso de Armando? Mesmo tendo ficado tanto tempo longe de casa, ele sabia que seu pai continuava a exercer grande influência sobre sua mãe e seu irmão, e isso lhe dava nojo.
- Vou andar um pouco, Alf. – disse Pietro, sorrindo para o irmão.
Levantou-se e saiu, chegando ao jardim que ficava na parte de trás da casa, onde também havia um banco perto de um grande coqueiro. “Nada mudou por aqui. Tudo está conservado e, ao mesmo tempo, tudo se perdeu...” E, repentinamente, Pietro notou que cada canto da casa conservava dor, tristeza, angústia, medo; não havia mais nada de bom ali. Tudo estava morto. Não havia mais vitalidade.
- Por que você voltou? – Armando, seu pai, estava atrás dele, sem que ele houvesse notado a presença paterna.
- Não voltei. Apenas estou visitando mamãe e Alfredo.
- Como se eles precisassem de você. – desdenhou Armando, com uma risada maldosa.
- Fique tranquilo. Ficarei aqui apenas essa noite. – disse Pietro, levantando-se e virando para encarar o pai. Ele olhava Armando com firmeza.
- O que já é muito para mim. É mais do que posso suportar. Preferia que você não tivesse nascido! – esbravejou Armando, furioso.
- Ou preferia que eu fosse, digamos, diferente. Talvez uma filha, papai? – e, dessa vez, Pietro deu um sorriso irônico.
Armando olhou para o filho durante um tempo. Em seu olhar, não havia mais sinal de arrogância, e sim de medo. Observava assustado. Sem conseguir sustentar o olhar, Armando virou e saiu. Havia um misto de ódio e medo quando ele entrou em casa.
- Pietro, meu querido, o almoço está na mesa! – chamou Lúcia, com suavidade.
Ao adentrar a sala, viu que todos já estavam acomodados. Sentou-se do lado oposto ao do pai. Por alguns minutos, eles se encararam como dois bichos prestes a se devorarem. Havia rancor entre eles, e isso estava mais nítido do que nunca.
Todos começaram a se servir. Aos poucos, um ar de informalidade tomou conta da mesa, e Alfredo, Lúcia e Pietro conversavam animadamente, enquanto Armando conservava o ar de fúria.
- Você se lembra da queda de bicicleta? Nós ficamos desesperados porque a bicicleta havia quebrado! Achamos que mamãe nos mataria por isso. – lembrou Alfredo, enquanto os três davam gostosas gargalhadas.
- Até parece! O que importava era que os dois estavam bem. – disse Lúcia, olhando os filhos afetuosamente.
- Ah, mas não adiantava. Foi esse o nosso maior medo naquele momento, mamãe. – falou Pietro, concordando com seu irmão.
Sem que esperassem, Armando se levantou da mesa, de forma brusca, e saiu em direção ao quarto. Ouviram o barulho da porta batendo. Um repentino e incômodo silêncio tomou conta da família. Agora almoçavam calados, cada um olhando para seu respectivo prato. Ao terminarem, os três levantaram e levaram tudo até a cozinha. Arrumaram tudo em silêncio. Terminaram e, pela primeira vez desde a batida da porta, trocaram olhares breves e significativos.
- Meninos, vou até o quarto. Aproveitem o dia, deem uma volta por aí. O dia está lindo! – disse Lúcia, e saiu em seguida.
Alfredo e Pietro observaram os passos rápidos da mãe. Quietos e pensativos, saíram em direção à varanda e sentaram nas cadeiras.
- O que está havendo, Pietro? – perguntou Alfredo, preocupado.
- Eu não entendo, não consigo entender, qual o motivo para mamãe aguentar tudo isso. E você, por que continua aqui? Por que aguenta? – havia indignação na voz de Pietro.
- Por mamãe. – respondeu o irmão, de forma objetiva.
- Então você sabe que ele não... – Pietro parou, temendo que o irmão lhe repreendesse.
- Que ele não presta? Que não deveria ser chamado de marido e muito menos de pai? Sim, sei disso tudo, Pietro. – completou Alfredo.
- E você acha que ela sabe?
- Mamãe? Sabe, mas prefere não acreditar.
- Você sabe de algo concreto contra ele?
- Não. Ouço algo aqui e ali, desconfio de muitas coisas, mas nada concreto. Sei que ele não é nada confiável e é uma pessoa extremamente ruim e maldosa. Tenho pena de quem se põe no caminho dele. – disse Alfredo, pensativo. – E você sabe?
Algo nos olhos de Alfredo fez Pietro notar que seu irmão falava menos do que realmente sabia. Mas ele preferiu não insistir:
- Eu? Não, não sei. – respondeu Pietro, parecendo bastante inseguro. Não, ele sabia que deveria esperar a hora certa.
- Todos nós sofremos com a sua partida, Pietro. Sentimos sua falta diariamente. Não sei por qual motivo você foi embora.
- Minha convivência com nosso pai ficou insuportável. Era briga e hostilidade. Não suportei.
- Uma atitude corajosa. Você, que parecia tão desprotegido, saiu de casa, foi viver longe. – disse Alfredo, sorrindo.
- Você sempre vai me enxergar como uma criança, não é? – perguntou o rapaz, sorrindo.
- Sim, e como poderia ser diferente? Você é meu irmão mais novo! Era desprotegido, sempre dependeu da minha proteção.
- Eu?! Você tá louco, Alf? – perguntou Pietro, fingindo estar indignado.
- Claro! Você sabe disso! Lembra-se daquele moleque que estudou com você e queria te bater? – e, juntos, riram e conversaram o resto do dia.
Quando anoiteceu, ambos foram para a sala, onde a mãe estava assistindo televisão, com um olhar triste. Não perguntaram, pois sabiam o motivo.
Alfredo foi para o quarto e Pietro retornou ao jardim. Sentou-se no banco do coqueiro e ficou pensando em tudo o que havia acontecido. “Pelo menos, passei por bons momentos, embora o meu dia tenha sido destruído pela presença dele. Que desgraçado! Ele sempre estraga tudo!” E, sem perceber, lágrimas rolavam pela sua face, como se elas tivessem vontade própria. Lembrou-se do que sua mãe lhe dissera uma vez: “Lágrima é o sangue branco. Então chore hoje para que não precise derramar sangue amanhã”, e ela estava certa.
Enquanto observava o céu estrelado, notou uma sombra parada ao seu lado. Não precisou desviar o olhar para saber quem era.
- Como você descobriu? – perguntou seu pai.
- Não precisei de muita coisa. Apenas meus olhos e meu cérebro. – respondeu, secamente.
- Como? – insistiu Armando
- Eu a vi com você. No início, achei que era amante, mas depois percebi que não era. Então vi que chegou um cara e a beijou, e ela o apresentou a você. Bom, compreendi tudo no momento da apresentação. – disse, enquanto Armando o observava.
- Por isso foi embora? – perguntou o homem, que conservava seu sorriso irônico.
- Sim.
- Você é menos burro do que sua mãe e Alfredo. Eu a trouxe aqui, minha filha, debaixo dos narizes deles, e eles não notaram. Como são estúpidos! – disse, gargalhando.
Sem pensar em nada, Pietro avançou para o pai e lhe empurrou, derrubando-o.
- Isso não vai ficar assim, pode ter certeza, moleque! – gritou Armando caído, enquanto Pietro entrava em casa, pálido e nervoso.
- O que houve, querido, que gritaria foi essa? – perguntou Lúcia, nervosa, enquanto Alfredo vinha em direção à sala.
- Mamãe, está na hora de você saber umas coisas. – começou Pietro, que olhava da mãe para o irmão. Alfredo balançou a cabeça em concordância.
- Saber o quê? – perguntou Lúcia.
- Lembra-se de uma moça que veio aqui com o papai? Cabelos pretos e olhos azuis, assim como eu.
- Ah, lembro! Irene é o nome dela.
- Então, ela mesma. Sabe quem é ela?
- Uma funcionária do seu pai, querido. Não é? – perguntou, embora já soubesse a resposta.
- Não, ela é... – e, antes que pudesse concluir, ouviu-se um tiro e, em seguida, Pietro estava caído. Atrás dele, Armando estava com uma arma, com um ar triunfante.
Sem que Lúcia pudesse agir ou pensar, ouviu-se outro barulho de tiro, só, que, dessa vez, Armando estava caído. Alfredo apontava uma arma na direção em que, segundos antes, estivera Armando. De forma ágil, Alfredo foi até seu pai e puxou a arma com o pé, evitando tocá-la.
Caído e aos berros, Armando praguejava o filho de todas as formas:
- Seu maldito! Eu vou sair daqui e vou te matar!
- O que é isso? Por que isso? Pietro, meu filho, fala comigo! – gritava Lúcia, que estava ajoelhada ao lado do filho caído.
Alfredo abaixou-se e tentou sentir a pulsação de seu irmão, mas notou que já era tarde demais.
- Mamãe, Irene é filha de seu marido. Por isso, Pietro havia ido embora. Ele não ia conseguir viver sob o mesmo teto desse traidor. Eu preferi ficar com você para protegê-la e garantir a Pietro que tudo ficaria bem. Ele ficou mais tranquilo e eu pude deixar a senhora em segurança com a minha presença. Papai sempre o humilhou porque ele sempre quis uma filha, e Irene nasceu na mesma época em que Pietro, o que fez de meu irmão um ser nulo para nosso pai. Se Pietro não tivesse nascido com a saúde fragilizada, papai teria ido embora com a mãe de Irene, mas ele ficou. Quando Pietro melhorou, a mãe de Irene já estava com outro, e ele sempre culpou meu irmão por isso, odiando-o e humilhando-o com todas as forças.
- Ah, é exatamente isso, seu imbecil! E saiba que Irene vale por vocês três! Ela vale por todos juntos! Vocês são inúteis, estúpidos. – disse Armando, gargalhando.
Sem hesitar, Alfredo apontou a arma para a testa de seu pai e atirou. Lúcia deu um grito de nervoso. Ela estava atônita, perdida. Não havia conseguido entender uma palavra que havia sido dita. E Pietro no chão? E aquilo tudo? Ela não conseguia formular uma frase.
- Como... como...? – Lúcia, em meio a lágrimas, tentou dizer algo.
- Não se preocupe, mamãe. Vou cuidar da senhora, como fiz até hoje. Venha, vamos chamar a polícia. Agora temos que descobrir o que será feito. – disse isso, e levantou Lúcia, levando-a pelo braço, enquanto ela chorava desesperadamente.