Clara (Um Conto Bipolar)
Clara
Clara procurava não dar conta dos ruídos lá de fora. Janelas cerradas, luz apagada, nenhum movimento. Apenas o som de sua respiração em meio às lágrimas que lhe rolavam pelo rosto. Conhecia a sensação de solidão e vazio. Sentia desprender-se de tudo que a ligava à própria vida. Vida que já não lhe parecia valiosa ou necessária.
Ela, que ontem mesmo estava na noite com os amigos.
São poucos os seus amigos, mas a eles juntaram-se amigos de amigos e o grupo fora aumentando. Quantas garrafas, doses de uma coisa e outra, cigarros, não se podiam precisar.
Estava acostumada a essas noites de muita gente e de poucos amigos, que começavam num copo e podiam acabar num quarto estranho em qualquer lugar da cidade com alguém que ela nem se lembrava do nome.
Só quem olhasse, de repente, talvez a percebesse vez por outra, a destoar do barulho, quieta, com a vista perdida, como se ali diante da mesa cheia e do bar lotado se encontrasse sozinha, apenas na companhia dos seus pensamentos. Ou apartada até mesmo deles.
Já não era importante o lugar onde acordava ou com quem. O pior acontecia: ela acordava!
Não tinha certeza se era a tequila, a vodka ou a cerveja, que lhe tonteava quando fechava devagar a porta, pretendendo não ser notada.
Um banho, alguns analgésicos e um antiácido. Era do que precisava antes de deitar e dormir por um dia inteiro.
Preocupação com hora não havia, tinha sido dispensada do último emprego já fazia dois meses. Não entrava na cabeça de nenhum chefe que algumas vezes fosse impossível levantar-se da cama.
Algumas vezes o corpo apenas não cooperava. Parecia pesar o triplo. Como se mexer? Nem um café desce nessas horas, nem uma água. Comer nem pensar! Banho só depois, muito depois. Ou talvez amanhã.
Parecia que as lágrimas não dariam lugar ao sono, mas ainda havia a última cartela de rivotril, da amostra ganha na última ida ao psiquiatra. Um comprimido. Não. Dois, porque um nunca fazia efeito mesmo. No máximo três.
As lágrimas secaram. O sono também.
Sair do quarto, não. Não seria uma boa.
Os pais estavam com aquela cara de novo. Aliás, desde antes de ontem. Por causa da briga com o vizinho do primeiro andar, que reclamou ao síndico da história de mandar a mãe dele enfiar a porra do cachorro no cu. Foda-se o vizinho, a mãe dele, o síndico e o cu do puto cachorro!
Dias assim, sempre confirmaram a impressão de que o convívio com as pessoas é impossível.
Só restava permanecer ali, pra sempre imersa num grande nada.
Veio o sono. Durou muito tempo. Embora ela não tivesse percebido. O quarto, asfixiado, lamentava a ausência prolongada do sol. As paredes encolheram nesses últimos dois dias.
Morando com os pais
_ Se não levar a sério o tratamento, nunca vai melhorar! Desta vez foram dois dias inteiros no quarto, só saiu para usar o banheiro, feito uma múmia, nem ao menos um banho tomou! Nem um copo d’água. Você quer morrer? Porque assim vai acabar conseguindo!
Dona Dora sempre foi boa mãe. Dedicada aos filhos trabalhou no comércio para ajudar o marido, sargento da Marinha, no orçamento da casa.
As crianças estudaram em escola pública, mas todos foram à faculdade, hoje são bem sucedidos, casados.
Carlos, o mais velho, funcionário público, com um salário generoso, já com um casal de filhos, Lucinha de quatro anos e Felipe de dois. Os xodós de dona Dora e seu Manoel.
A mais nova, Cláudia, casou-se há pouco com André, seu sócio do escritório de advocacia.
Só Clara não se casou e já com 36 ainda mora com os pais.
Formou-se na Faculdade de Pedagogia, até arranjou emprego em um bom colégio particular. Mas que escola manteria uma professora de humor tão inconstante perto de crianças entre cinco e dez anos de idade? E pra piorar havia os atrasos repetidos e as faltas ao trabalho.
Foram-se alguns empregos nessas épocas em que se encontrava descompensada. Não conseguia seguir rotina. Perdia fácil a paciência com as crianças. E embora amasse a profissão que escolheu, às vezes sentia vontade de sair correndo e largar tudo na mesma hora. Pro inferno!
Havia muito carregava aquela sensação de inutilidade, de ser incapaz de concluir o que começava...
Convivia com a desconfiança e as críticas constantes no trabalho, também as de alguns amigos de copo e até as da própria família.
Na hora de sair de casa, não tem preguiça! Preguiça só vem na hora de trabalhar! Não conserva emprego porque não se esforça. – Ouvia tantas coisas...
E o dinheiro? Ninguém acreditava no tamanho das dívidas. E quem pagava eram os pobres dos pais, já tão cansados e tendo que aguentar um problema atrás do outro.
Satisfação mesmo só as passageiras, que as compras inacabáveis, o álcool, o sexo, e várias vezes as drogas criavam por curtos momentos, depois levavam consigo, tão rápido quanto haviam trazido.
E se ela não saísse do quarto nunca mais? Se não procurasse nem respondesse os chamados dos amigos? Se nunca mais fosse ao consultório do psiquiatra? Adeus, merda de terapia!
Alguém perceberia? Alguém sentiria a sua falta?
Achava que não.
Tinha certeza que não.
À noite, do darkroom da boate
- Uma caipiroska com bastante gelo, por favor! E crapicha na vodka!
Clara havia misturado muita coisa. Bebeu de tudo aquela noite. Estava querendo esquecer os problemas e pra isso sair de órbita era sempre a melhor pedida.
Também, pra ficar no meio daquela gente toda, aguentar tanto barulho, tumulto, confusão, só bebendo muito mesmo!
A essa altura já não reconhecia mais nem os seus amigos, nem sabia com quem tinha vindo. Se bobear, nem a si própria reconhecia. Se bem que isso não seria novidade...
Dançava de olhos fechados. Sentia-se muito sensual! Maravilhosa aquela sensação de liberdade! Queria ter isso todos os dias.
Sentiu mãos descendo pelos seus braços, devagar.
Continuou dançando, não abriu os olhos. As mãos agora percorriam sua cintura, seus quadris e a puxavam para traz.
Podia sentir o corpo quente colado no seu. Os beijos na nuca e no pescoço arrepiavam sua pele. As mãos agora caminhavam por ela sem destino certo.
Ele não fazia questão de disfarçar sua excitação. Agia como se estivessem sozinhos ali. Ela estava.
As carícias aumentavam em intensidade. Em intimidade. As mãos dele pousaram dentro da sua blusa e embaixo da sua saia. Beijos molhados.
Ela abriu os olhos e percebeu que os dois chamavam mais atenção que os go-go boys e girls, que dançavam seminus, espalhados pela boate. Isso a excitava ainda mais. Queria ser vista, desejada.
- Preciso beber mais! Muito mais! – Sentia um misto de euforia e excitação.
- Vamos buscar.
- Vai você. Espero aqui. Não demora.
Logo ele passou a mão por cima do seu ombro oferecendo o copo.
- É caipirinha! Quem você pensa que eu sou? Não bebo cachaça. Eu preciso de vodka!
- Eu sei do que você precisa!
Ele a pegou pelo braço e a fez entrar no darkroom. Já não eram duas, mas várias as mãos que sentia pelo corpo quando ele a encostou na parede e a tocou afastando a calcinha para o lado.
Gostava de pensar que podia tudo. Realmente acreditava nisso. Não havia limites para ela, que afinal não valia muito, mesmo...
-Agora já chega! – Ela disse. E saiu arrumando a roupa.
Voltou pra pista de dança e com alguma dificuldade reconheceu dois amigos lá no meio. Mais uns tragos, devia ser tequila ou algo assim. Um cigarro.
Ele bateu no seu ombro.
- Onde você estava? O gelo derreteu e a caipiroska já deve ter virado suco.
- Estava com você, oras! Respondeu com uma gargalhada! Acho que estava. – Pensou.
Ele sorriu e acenou com a cabeça, fazendo que sim, embora não parecesse entender bem o que se passava. Dançaram mais. Beberam mais. Muito mais!
Sugeriu que fossem a outro lugar. Apenas os dois.
Clara respondeu que sim, mas primeiro precisava vomitar.
Na cama do motel ele enrolava um baseado enquanto ela se espreguiçava.
Fumaram, quase sem falar. Sorriam e se tocavam.
Ele olhou o relógio. Quase seis horas.
- Precisamos ir, trabalho daqui a pouco. Pra onde te levo?
- Onde eu moro mesmo? Hahahahaha!
- Você é louca?
- Sou. Mas acho que sei onde você tem que me levar.
Na frente do prédio, Clara já ia descer do carro quando ele a pegou pelo braço:
- Quer me ver de novo?
- Sim. Claro que sim!
- Aliás, meu nome é Marcelo, sou professor, solteiro, disponível... E você?
- Coincidência, minha irmã mais velha também é.
-Solteira? Disponível?
-Não, professora... Hahahahaha
-Meu nome é Cláudia, sou advogada. Eu te defendo quando você precisar. Aparece no meu escritório uma tarde dessas, quando você quiser. Não precisa nem marcar hora. E aí nós repetimos a dose lá mesmo...
Antes de sair do carro, Clara tirou um cartão da bolsa e entregou a Marcelo.
“Cláudia Pereira Bastos – Advogada Criminalista”
Jane Simões
15/08/2011