O escuro dos quartos

Eu não consigo te conhecer, é tudo muito confuso! Essa frase quem me falou foi Janaína, quando terminei o primeiro grau e comecei a correr atrás das meninas. Ela disse assim, sem pretensão, como se estivesse escolhendo o sabor do sorvete, ou que filme iria assistir. Essa observação dela me levou há muitos pensamentos. Pela primeira vez levei em conta como a maneira como a pessoa olha gente determina nossas maneiras diante dela ou quanta espontaneidade vai haver na relação. Com Janaina era bom, mas tinha algo de escuro nela também, impalpável, como se entre meus olhos e os dela, houvesse um vão, que amortecia nossas palavras ou fazia ganhar um sentido misterioso. De todo modo, estar com ela me incorreu a necessidade de buscar, ou entender o que dividia nossas intenções. Em casa, uma quantidade grande de historias e situações inacabadas me apareceu na cabeça, fazendo filas, cada uma com sua ansiedade. Foi quando me veio a casa que morei quando criança. Eu deveria ter uns oito anos, talvez sete. Foi quando nos mudamos de cidade, fato que até hoje me afeta e me faz sentir diferente dos outros.

Quando me mudei pra aquela rua foi diferente. Começar de novo, sem amigo nenhum. Mas olha que a casa era bonita, uma das mais maiores do bairro, Herança do meu avô. E meu pai, como não ficava em emprego, acabou de minha mãe assumir as rédeas da nossa vida. Meu pai queria nem um pouco, foi um quebra pau até ele aceitar. Já que em Potiraguá, ele tinha todos os amigos que não deixava ele quieto em casa.

Dentro de casa, eu me perdia de tanto cômodos. Onze quartos, e eu fazia de cada um deles uma base. Brincava o dia de quarto em quarto, como se existissem várias cidades e realidades dentro da casa. Eu menino, não tinha as preocupações das gente grandes que estavam a toda hora de cara amarrada. Não ligava. De verdade não entendia onde estava tantos problemas.

Um quarto era lugar de muitas festas. Fazia bebidas, drinques de café, de chá, água gelada. Eu era o anfitrião, dono da casa. E meus convidados gente dos cadernos, folhinhas e das novelas. Passavam muito tempo me elogiando ou falando de como minha casa era boa e bem cuidada.

Uma delas, moça alta e bonita, que estava no caderno de meu irmão, não se ocupava de outra coisa. Não saia de perto de mim, querendo saber da minha vida, os lugares que vou, se tenho vontade de visitar o Rio Janeiro. Insinuava eu frequentar sua vida e conhecer seus amigos e eu querendo me livrar dela, já que tinha tantas outras bonitas, de vários programas de televisão. Um loira no canto, que nem me lembrava de onde eu inventei, segurando um copo de bebida, sem conversar com ninguém, triste,

Mas bem sóbria, sem desespero nenhum. Os garços servido comida, uns salgadinhos, que fazia as bocas mexerem bem devagarinho cheias de esperanças.

Em outro quarto, que minha mãe usava como despensa, o arroz, o feijão, as latas de óleo erar recursor de minha riqueza. Um armazém , lugar seguro onde guardava toda minha produção de grãos, que seria vendida pra outras cidades, nos mercados. Imaginava caminhões grandes com seus trabalhadores, carregando sacas, um senhor de charuto e chapéu preto contabilizando, preparando os cheques, querendo descontos. Um tipo desses ricos que não conversa com ninguém. Que quer saber apenas como vai as vendas e o lucro. E tinha outros quarto. Cada um com seu sonho. Aos poucos eles foram se esgotando, as brincadeiras de apequenando, os quartos foram diminuindo, cada dia, cada semana, era como se entrasse um trator, com uma par bem grande, com dentes de aço, feroz de decisão, arrancasse um a um esses quartos, e a casa que era grande foi se diminuindo, ficando bem pequena e mais triste.

Lembro que quando já tinha um ano que morava lá, só existiam dois quartos. Um cheio de bonecos e brinquedos de criança, que serviam como lugar de descanso. Deitava da esteira de cizal e olhava o super-homem, com sua capa dura, congelada. O batman preto, o carro de bombeiro de latão, sem rodeiras, o eixo de madeira sustendo a lata já torta de tanto uso. E fui me afastando. O tédio daqueles heróis que precisavam de minhas mãos, que faziam minha cabeça doer de tanto pensar. Inventando historias, ou imaginando jeito. Percebi que se não me mexer, os heróis são apenas plásticos

Que parecem homem.

E finalmente, o ultimo deles, um que dava pra porta da rua. Tinha uma janela que durante o dia minha mãe deixava abrir. Dela via a praça, o coreto, as gentes circulando, sentados nos bancos, ou voltando da feira. O jardim, os pés de amêndoa, que forravam o chão de folha e fruto, o velhinho, Seu Mané dos Anjos, que pegava as folhas com espeto apertando elas contra a terra. Via aquelas imagens se mexendo, e perturbando minhas vontades. Foi quando me cansei delas também. quando sai desse quarto, não sobrava mais nada, o corredor, talvez, ou sala de jantar habitada por gente triste, que não tem janela ou vontade de inventar brincadeiras.

Foi nessas época que algo aconteceu aque não consigo nem dar nome. Comecei a me interessar pelas pessoas. Minha mãe era também um quarto, bem grande cheio de lugar escuro e de medo. Havia meu pai, outro quarto, bem longe do quarto da minha mãe, cheio de festas, que não acabavam nunca. Fiquei descobrindo o quarto dos outros até que Janaína, me mostrou que a grande parte das pessoas não gostam de entrar em quartos.