FRENTE AO MAR
Esta pedra sobre a qual estou sentado traz-me muitas lembranças. Cheguei aqui ontem e tratei logo de armar a barraca que trouxe comigo, tendo encontrado o local praticamente como o deixei há dezoito anos. O acesso não é fácil, o caminho é tortuoso e atravessado por cobras. Provavelmente por isso é que, nesse tempo todo, ninguém tenha se interessado em acampar neste recanto tão ermo, embora a vista adiante seja realmente de encher os olhos. O mar é imenso, é belíssimo, de um azul deslumbrante. Mas as pessoas que vêm com suas tendas, trazendo tudo o que as mochilas conseguem conter, preferem o lugar mais apropriado, cerca de um quilômetro abaixo, bem à direita, onde o campo é aberto, tem água potável, churrasqueiras e, hoje, até luz elétrica. No verão é que enche de gente, a maioria são jovens em busca de novos ares e alguma aventura, oriundos principalmente de Vitória e do Rio de Janeiro.
Cidade esta onde morei por muitos anos. Minha vida no Rio sempre foi meio complicada, talvez por jamais encontrar uma casa que fosse de fato sossegada para morar e estudar. Eu não gostava de pensão nenhuma, já que tinha de dividir o quarto com outros rapazes. Trabalhando de segunda a sexta, às vezes aproveitava o final de semana para curtir um passeio a alguma cidade calma do estado fluminense. Assim, quando houve um feriado prolongado, aceitei entusiasmado o convite de alguns colegas para acamparmos neste ponto do litoral norte do estado. Ficamos por quatro dias, tendo cada qual trazido sua barraca. Como gostei da experiência, até então única, decidi que um dia eu voltaria a este lugar solitário e tão apazível.
E realmente, cerca de um mês depois, vim outra vez, e sozinho. Fiquei três dias, num dos quais meti-me a explorar os arredores, e assim encontrei este lugar, depois de subir pelos penhascos com certa dificuldade.
E logo aí à minha frente esse precipício. Deve dar uns trinta metros até lá embaixo, onde o mar bate com fúria sobre as rochas. É assustador, mas também é maravilhoso. E quase o mesmo ocorre na área de camping, hoje tão frequentada. O terreno não é tão elevado como aqui, mas no mais é a mesma coisa, é o mesmo precipício. Só que agora colocaram uma cerca de proteção. Há dezoito anos só havia uma placa que dizia: Não jogue lixo ao mar.
Lembro daqueles tempos. Na verdade não tenho queixa da maioria dos empregos que tive no Rio de Janeiro. E o último até que foi o melhor de todos. Mas foi então que parei para pensar e achei que queria ir mais adiante. Eu estava parado com os estudos há um bom tempo. Deu-me vontade de progredir, de cursar uma faculdade, de assimilar muitos conhecimentos, inclusive aprender alguns idiomas.
Como minha tendência era de isolar-me para poder estudar em sossego, tive a ideia de largar tudo, deixar o emprego e ficar só estudando para depois enfrentar as duras provas do Vestibular. Meu plano era acampar aqui mesmo onde novamente me encontro, trazendo todos os livros que iria precisar. Foi o que fiz, isso uns quatro meses antes dos exames. Tendo providenciado tudo, tomei o ônibus na Rodoviária Novo Rio e cá vim, cheio de coragem, determinação e entusiasmo.
Hoje que estou bem amadurecido, acho que foi exagero, foi loucura o que fiz. Não precisava chegar a tanto só para passar no Vestibular. Mas tudo bem, passei, fiz a faculdade, arranjei um emprego melhor, e hoje, de férias, aqui estou para matar a saudade daquele tempo e deste lugar.
Sim, depois de tanto tempo, aqui estou de volta, só para ficar quatro dias. Sentado na mesma pedra, tento escrever um conto. Há dezoito anos eu sentava aqui para escrever redações, matéria esta tão importante e sempre exigida para o ingresso no curso superior.
Mas os meus estudos mais sérios davam-se dentro da barraca, onde eu enfrentava toda a matéria de matemática, física, química e tudo o mais que costuma ser o pavor de muito estudante. Por horas e horas durante o dia eu quase que não saía de minha concentração. Saía às vezes, é claro, para respirar melhor, e sentava nesta pedra, admirando a paisagem ao meu redor.
Eu trouxera um binóculo que era uma maravilha, muito potente, que me permitia enxergar muita coisa interessante. Pelo menos uma ou duas vezes por semana, por alguns minutos, eu aqui ficava, empunhando o tal instrumento óptico.
Na época não havia ninguém lá embaixo naquela área. Era inverno, não tinha luz elétrica. Eu só ia à fonte para abastecer-me de água uma vez por semana, e percebia que se alguém acampava era por apenas dois ou três dias, e se ia embora.
Mas um dia, olhando de binóculo, vi uma mulher, que havia armado uma barraca. Deveria ter uns quarenta anos, e pareceu-me estar sozinha. Não dei maior atenção ao fato, que nada tinha de estranho.
Dias depois, olhei de novo, e notei que a mulher estava acompanhada de uma moça, talvez de uns dezoito anos. Caminhavam por ali, conversavam, entravam e saíam da barraca, que era das grandes.
Eu entrava em minha tenda e metia-me nos estudos. E os dias e as semanas transcorriam.
A cidade mais próxima ficava a alguns quilômetros, onde eu ia uma vez a cada quinze dias para comprar os mantimentos que garantiam minha sobrevivência.
Na maioria das vezes eu só vinha cá fora para espreguiçar-me ao sol, para esticar o corpo, ou para sentar nesta pedra e ler qualquer coisa diferente, como o jornal que trazia da cidade.
De vez em quando pegava o binóculo e olhava tudo ao redor. Foi então que, olhando para o acampamento quase deserto, percebi que a tal moça estava grávida. Olhei melhor, mais atentamente, não havia dúvida, ela estava de barriga já bem saliente. A outra mulher estava sempre por perto. Seria sua mãe? Poderia ser; mas, afinal, que me interessava?
As semanas transcorriam. Já há muito tempo eu não fazia a barba, e meu cabelo estava comprido. Decidi que iria barbear-me e cortar bem curto o cabelo na última vez que fosse à cidade, quando então iria embora para o Rio.
Eu olhava pelo binóculo e podia através dele ler aquela placa situada a um quilômetro de distância, que dizia: Não jogue lixo ao mar. Advertência essa, aliás, que a mulher não acatava. Eu via que ela jogava lixo no precipício, certamente por achar que ninguém a observava.
Era-me difícil entender por que aquelas duas mulheres não se iam embora, a barriga da mais jovem crescia que parecia que iria estourar a qualquer momento. Provavelmente iria dar à luz ali mesmo.
Mas os meus dias de estudo aproximavam-se do fim. Eu precisava partir, voltar para o Rio de Janeiro. Voltaria para a mesma pensão onde antes eu estava, aguardando a hora de enfrentar o Vestibular. Fiquei ainda uma semana neste lugar, estudando com o máximo de empenho. Nem mais me interessei em olhar qualquer coisa por aí afora.
Chegou o dia. Juntei minhas coisas, meus livros, enchi duas ou três mochilas, desmontei a barraca. Claro que não foi fácil levar tudo de uma só vez, descendo o caminho íngreme. Mas fui devagar.
Tive, é claro, de passar pelo acampamento lá embaixo. A barraca grande ainda estava lá. Mas a mulher, que agora eu podia ver mais de perto, parecia que se preparava para desmontá-la. Parei, perguntei se precisava de ajuda. Ela respondeu secamente que não, e não falou mais nada, nem me deu maior atenção. Assim desestimulado, também não perguntei nada a respeito da outra, da jovem, e fui andando, fui-me embora.
Chegando à cidade, procurei uma barbearia, fiz a barba e cortei o cabelo bem curto, o que deixou-me inteiramente com outra aparência. Em seguida dirigi-me à rodoviária, mas descobri que não havia ônibus naquele dia para o Rio. Sem outro recurso, procurei uma estalagem para passar a noite.
No dia seguinte, depois do meio-dia, aí sim, havia o ônibus que eu queria, e eu na rodoviária lá estava.
Foi então que percebi as duas mulheres do acampamento; estavam lá, sentadas, aguardando o ônibus. Seria uma coincidência que fossem também para o Rio naquela hora.
Mas o que me causou grande impacto foi perceber que a jovem não estava mais grávida. Havia dado à luz. Sim, mas cadê a criança? A mulher fumava um cigarro; a outra, a jovem, estava quieta, olhando para o chão, com o olhar apático, pensativa. Olhei bem, não vi bebê nenhum.
A mulher que me viu no acampamento com certeza não me reconheceu, pois agora eu estava sem a barba, quase careca, de boné.
Mas enfim, chegou o meu ônibus. Embarquei, acomodei-me, e logo o ônibus partiu. As duas mulheres lá ficaram, sentadas, aguardando. Provavelmente iriam para Vitória.
E eu fui embora achando que não mais voltaria para cá. Mas acabei retornando, só para ver como ficaram as coisas. A paisagem em nada se alterou. A pedra sempre será a mesma, e o mar continuará batendo furiosamente contra os rochedos. Eu era meio retraído e gostava de solidão, e acho que neste ponto pouco mudei. E só agora dou-me conta que alguém lá de baixo pode estar me observando de binóculo. Como não pensei nisso antes? Vou entrar em minha barraca, pois não consigo escrever quando me sinto observado.