A Primeira Profecia - O Santuário
Capítulo I
Apenas um pequeno pedaço de couro de animal mantinha suas partes íntimas encobertas, a barba longa se entranhava na lama entre as pedras e os seus cabelos emaranhados pareciam fazer parte da sujeira que descia morro abaixo. O peso do cofo às costas - com cipó, pedras de fogo e carne ressequida ao sol - parecia insuportável. Mesmo assim, o instinto de sobrevivência e a agonia do corpo mal tratado buscava um lugar seguro. A noite não era segura naquelas paragens, feras famintas costumavam caçar sob a luz da lua cheia.
Ofegante, com medo e quase em pânico, ainda tentou olhar o horizonte de soslaio. Enquanto segurava firme numa ponta de pedra, jogou o corpo de encontro ao paredão. Sempre devagar, ia mexendo com os pés sobre o patamar que o sustentava e afundava dedos e calcanhares na lama empossada nos sulcos da rocha. Por todos os lados, filetes de água deslizavam ladeira abaixo e formavam regos que depois se alargavam na distância. Na base da queda d’água, uma só torrente seguia arrastando lama e granito enquanto deixava um tom escuro às pedras moldadas com a força das águas. Um borbulhar ensurdecedor indicava que era época de muita chuva naquela região.
Por um instante, daquele ponto, conseguiu ver boa parte das planícies; a maioria perdida entre os agrupamentos rochosos e o verde da caatinga. O relevo alto constituía um planalto irregular com muitas erosões, principalmente nas suas bordas. Nas áreas planas, na superfície central do planalto, distinguiu as vastas chapadas que se estendiam até as bordas dos canyons. Pela primeira vez, notou as paredes íngremes das serras com seu topo e as costas suavemente inclinadas, dando um aspecto de ruínas. Formas curiosas de relevos isolados completavam sua visão admirada.
Os pés calejados mudaram de posição e pisaram firme buscando maior segurança. Apoiado, olhou a abertura ao lado. Vagarosamente, foi deslizando em direção à entrada no paredão. Com medo de despencar, novamente buscou firmeza na rocha. A abertura estava logo ali; não desistiria. Num último esforço, com uma das mãos solta no ar, jogou todo o peso em direção a abertura na rocha e conseguiu impulsionar meio corpo na abertura da caverna. “Finalmente, estou seguro.” - murmurou enquanto revirava o corpo e procurava se acostumar com a escuridão do lugar.
Pouco a pouco, foi decifrando a penumbra. A maior parte das paredes lisas tinha uma coloração avermelhada, devido à presença de produtos da oxidação de rochas máficas; cores escuras completavam a tonalidade das paredes. O branco dos ossos espalhados pelo chão cuspia seus reflexos no seu rosto assustado; apenas carcaças de pequenos animais, vítimas de seus predadores. Compensando o quadro fúnebre, no fundo da gruta, um último filete da luz do sol, vindo de uma clarabóia no teto rochoso, refletia-se nas águas empossadas brotadas das fendas de maciços calcários, dando uma tênue luminosidade para o lugar. Um pouco de luz em contraste com o negrume e a putrefaçao do lugar; um odor de morte ainda pairava no ar.
Em pouco tempo, o último reflexo de luz sumira de vez; a noite acabara de chegar. Os uivos das feras não tardariam a ecoar na escuridão. Contornando a exsurgência, refugiou-se em um canto da caverna, procurando um lugar menos úmido. Mal adormeceu e ela apareceu, mudando de cor e de voz na entrada da gruta. Ora palavras amenas, ora gritos, ora gargalhadas... Procurou tampar os ouvidos com as mãos e escondeu o rosto de encontro ao chão. “Maldita luz...!”
O corpo foi se contorcento enquanto um cheiro de sangue tomava conta do lugar. Com suas próprias mãos, o branco das ossadas agora rasgava suas veias e deixava marcas nas rochas máficas. Marcas que iam seguindo, ora lineares, ora desconexas,... Sempre marcando a pedra bruta com a ponta dos ossos ensangüentados.
Não tardou muito, da sangria do pulso, o sangue se esvaia sem controle. Uma fraqueza começava a lhe abater enquanto um calafrio tomava conta do seu corpo. Aos poucos, foi perdendo o tato com o chão da gruta. Tentou novamente riscar a parede da gruta, mas não conseguiu. Uma dor lancinante tomou conta de todo o corpo e ele tentou gritar; apenas grunhidos sem nexos saiam da garganta.
Um medo atávico de morte tomou conta do seu semblante. Pensamentos contorciam seu juízo e deixavam perguntas no ar: “Como um ser bruto como ele poderia discernir sobre o atavismo da morte, se carregava consigo somente a ira e o medo na vida? Como podia entender que sua ira nutria a coragem de lutar pela sobrevivência? Como decifrar o medo que o fazia buscar proteção naquela gruta? Tudo entrelaçado na sua cabeça como as ações de fugir ou esconder-se para s simples sobrevivência. Nada mais tão humano, tão antigo, tão questionado...
“A minha morte pelas minhas próprias mãos”. – Concluiu. O seu instinto de sobrevivência diante dos perigos da vida agora aniquilado por um ato insano.
Antes de cair, ainda deu para ele ver a última pintura nas rochas: de costas, duas crianças entrelaçadas pelas mãos e um sinal da cruz nos ombros de cada uma. Quando seu corpo bateu ao chão, as crianças sumiram na escuridão enquanto uma nuance de um rosto angelical passava sobre sua face, deixando uma presença meiga no local.
Um silêncio tomou conta da caverna. O odor de putrefação já não incomodava suas narinas e o chão agora parecia macio, apenas um odor de mofo em roupas mal lavadas. Em um instante, a última luz da caverna voltou com várias nuances e os estralar dos ossos cortando a pele parecia, agora, um toque suave de dedos macios na carne que não mais sangrava.
“- Devo estar no céu...!” – Pensou.
Uma sirene suave cortou os ares enquanto um leve sorriso contornou seus lábios. Com a mão, deslizando da altura do nariz para o queixo, tentou amenizar a lama do rosto. Notou que agora tinha apenas uma leve barba por fazer. O despertador parou de tocar, as luzes e os sons indicavam que ele dormira, mais uma vez, com a televisão ligada. Ao lado, um folder mostrava foto de uma montanha rochosa com abertura central circular e um slogan logo abaixo: “Descubra as belezas da Serra da Capivara.”
Enquanto ele desligava a televisão, passos macios começaram a pisar na entrada do quarto e pelos contornos da luz ele fitou a silhueta feminina que adentrava porta adentro. Os olhares se encontraram num silêncio ensurdecedor.
- Entre; há muito tava te esperando...
(Texto em montagem - Livro "A Primeira Profecia"