O mais infeliz dos homens
Todo homem carrega em si um cadáver, mas o senhor Antonio Udina carrega sobre os ombros todos os cadáveres de sua raça. Pelo menos é o que me dizem estes seus olhos mortiços, angustiados, manchados por um desespero incomensurável e infinito, um rosto de condenado que contemplo com pena nesta vetusta página de jornal. Tem-se a impressão de que seus olhos fazem um esforço terrível para saltar do retrato, tornar da morte ancha, a fim de humildemente implorar perdão aos que ainda vivem, como se alguma culpa ele tivesse nisto tudo. E juro que por mais de uma vez pensei ter visto lágrimas escorrendo pelas folhas amareladas do jornal.
Leio novamente o texto que corre abaixo da fotografia: faleceu no dia dez de junho de 1898 o senhor Antonio Udina, o último falante do idioma dalmático. Respiro fundo e repito em voz alta, escandindo dolorosamente cada sílaba numa sonoridade quase palpável, como se desejasse certificar-me de que a minha própria língua ainda existia sobre esta singular terra dos homens: o último falante do idioma dalmático...
Talvez para a maioria das pessoas, notícias desse tipo não dizem absolutamente nada e pouco importa que o falecido seja o primeiro ou o último, democrata ou republicano, cristão ou agnóstico. Se ele morasse nesta minha pequenina cidade de Atibaia, é possível que o seu óbito tivesse lugar na imprensa local e quem sabe algumas matronas respeitabilíssimas deitariam lágrimas comovidas pelo seu passamento. Mas para alguém como eu, que continua tentando escrever um conto prestável - e não apenas estas páginas sofríveis que venho escrevendo ao longo de minha vida - a morte do senhor Antonio Udina encerra uma dramaticidade que não cabe em palavras.
Um escritor deve sempre tentar apreender a essência e a verdade dos fatos. Neste caso, a verdade incontestável diz respeito à morte de um ser humano específico entre tantos outros, um velhinho de setenta e sete anos, desdentado e surdo, que viveu pacatamente sua vida e que tinha tudo para terminar seus dias no sossego do próprio lar, respirando o perfume fresco de sua horta. Mas a essência não é essa. O fundamental, o elemento basilar carregado por um drama funesto, ignominioso, corresponde à morte da língua.
Eis a angústia que vejo escrita nos olhos desse pobre homem, o mais infeliz dentre todas as criaturas, pois o destino o escolhera para sepultar a língua de seus ancestrais, o idioma através do qual seus pais e avós perceberam o mundo, sonharam, amaram e pelo qual fazia algum sentido viver. Ele sabia que em breve seu corpo se converteria em húmus para adubar o barro das florestas, mas um milhão de vezes pior do que a consciência da própria morte, era a dor acachapante advinda da plena lucidez de que com ele morreria a língua que lhe haviam confiado. Aquele precioso tesouro que atravessara incontáveis gerações na boca de homens sábios e homens rudes, reis e camponeses, cantores e meretrizes, aperfeiçoando-se ao correr dos séculos, enriquecendo-se, polindo-se até alcançar a mais inexcedível expressão na voz grandiosa de poetas sublimes, pois esse imenso legado haveria de se extinguir para sempre quando o peito do velho Udina se calasse novamente em matéria mineral.
Há três dias está chovendo aqui em Atibaia. Em dias assim, aproveito os finais de tarde para caminhar debaixo da chuva em busca de inspiração, coberto apenas por uma capa plástica transparente. Gosto de sentir o pulsar das ruas, o tamborilar das gotas de encontro à minha capa, o vento gelado soprando democraticamente para as trevas tudo que vive em nosso século. Mas enquanto caminho, vou pensando em minha própria dor, uma dor extremamente desprezível, mesquinha e que no momento se resume a isso: a falta de uma boa idéia que dê vida a um conto.
Lembro-me do velho Udina, de sua dor ingente, de seu destino intolerável, e me envergonho dessa minha dor canalha e sórdida; envergonho-me ser esse escritor limitadíssimo que sou, capaz de escrever apenas histórias pessimistas, deprimentes, cruéis, as quais somente envenenam a alma pura dos poucos leitores que ainda possuo. Como me agradaria poder escrever contos onde as personagens caminhassem sempre em jardins ensolarados, andassem de bicicleta, comessem sobremesas todos os dias. Como eu gostaria de escrever pelo menos uma página que contivesse elevadas mensagens otimistas a respeito da vida e dos homens, uma história perfumada com pétalas de fraternidade e sinos a repicar centelhas de esperança. Mas escrevo o que vejo... e o que meu coração vê neste instante é um cemitério plantado sobre as costas arqueadas do senhor Antonio Udina.
Eis a tragédia. Um dia, ele saiu de sua casa para fazer qualquer coisa na cidade, talvez comprar um maço de escarolas ou rabanetes ou ainda pepinos. Quis o destino que acidentalmente ele pisasse sobre uma mina terrestre, que explodiu com alguma violência, lançando o velho e suas verduras para a direção de todos os pontos cardeais. Eram seis e meia da tarde, uma tarde indolente, mansa e preguiçosa, uma tarde típica do fim do século dezenove agonizante, tarde com aromas de despedida, que coloria com tintas vermelhas os horizontes de um mundo que não mais teria Antonio Udina, um mundo que não mais comportaria o idioma dalmático.
Quando uma língua morre, Deus morre um pouco em sua eternidade. Algo de muito errado se passa na contabilidade divina, como se os seus desígnios fossem alterados pelas patas do homem. Minha profunda ignorância impede-me de compreender certas coisas e por isso sou incapaz de conceber os motivos que levam uma língua à extinção. A meu ver, nem guerras, nem epidemias e pestes, nem o mais tirânico domínio de um povo sobre outro teriam a força destrutiva necessária para realizar tamanha calamidade. Sou um escritor de uma nação periférica, que as pessoas dos países civilizados costumam chamar de Brazil. Aqui também temos uma língua - uma língua colorida, pujante e deliciosamente complicada - através da qual consigo expressar bem ou mal os meus sentimentos e pensamentos. Antonio Udina se expressava para um mundo surdo e tinha apenas a certeza do abismo além de suas retinas. Eu sinto toda a genialidade e a potência extraordinária do idioma fervendo pelas minúsculas entranhas dos meus poros. Udina trazia o sangue apodrecido e os restos de sua língua já cheiravam a carniça. A minha voz pulsa e refulge e fertiliza a excelência do idioma num hino canoro de eternidade; a voz de Antonio Udina fez-se pedra e agora nidifica apenas em alfarrábios históricos.
Não espero fazer desta página um conto. Não pretendo compor o réquiem de uma língua cadáver. Não desejo escrever nada que possa ser utilizado por insensíveis estudantes de lingüística românica. Quero apenas deixar registrado o meu profundo sentimento de piedade e afeição por este homem que teve o infortúnio de vir a um mundo em ruínas, que herdou um idioma moribundo e o consumiu sílaba a sílaba, silencioso, dolorosamente, na peçonhenta solidão que abarcou toda sua vida. Um homem que viveu e morreu para sua língua, pela sua língua e com a sua língua. Um homem ao qual chamaram Antonio Udina, o mais infeliz dos seres.