Na velha lata amarela (EC)
Ultimamente ela se sentia tensa, preocupada. Desde que o estranho entrara em sua casa, colhera o seu jardim e enfeitara a mesa de sua sala com as flores que arrancara dele, uma nuvem toldava os seus pensamentos. Quem poderia ser? A sua mente tão prática, começara a fantasiar e pensamentos enlouquecidos ameaçavam tomar conta dela. Sabia que eles tinham vida própria e por isso precisava redobrar a atenção para que não se tornassem senhores de sua vida.
Naquele dia demorara-se mais do que o costumeiro sentada junto à pedra à beira do rio. Andava com medo de voltar para casa. Queria ter mudado o cotidiano de seus cães: eles viviam soltos pelo povoado e só voltavam para se alimentarem e dormirem. Ela deixava tudo arrumadinho, já pela manhã, as latas de goiabada vazias enfileiradas com a comida deles, a água ao alcance de suas bocas sedentas. Com eles se sentia segura, mas não queria fazer de seu medo, razão para tolher a liberdade deles.
Antes de ver, sentiu. Alguma coisa estava errada, custou a perceber o que era. Mas quando percebeu, gelou...
Ela estava lá, no peitoril da janela, ao lado da porta de entrada. A velha lata amarela, de óleo de cozinha, onde guardava todo o seu dinheiro. Rosas vermelhas contrastavam com o amarelo da lata, fazendo um belo conjunto. Ele entrara novamente em sua casa, o estranho, lhe trazendo flores. Desde a primeira vez, ela passara a fechar a porta com chave antes de sair. Apalpou o bolso da velha calça jeans, a chave estava ali, não a tinha perdido. Aproximou-se vagarosamente sem saber o que olhar primeiro, com atenção: se a beleza das flores, a lata em si, para conferir se era a sua mesmo ou apenas outra, parecida, a situação da porta. Se disso dependesse a sua vida, não saberia responder: o que olhou primeiro? Mas de repente sabia que a porta estava fechada, como de costume, sem sinais de arrombamento, que a lata era a sua porque nenhuma outra poderia ter o mesmo sinal quase imperceptível de amassamento, ou o cartão escrito com letra de forma, preso ao caule de uma das rosas: Feliz aniversário.
Então hoje era o dia de seu aniversário. Havia se esquecido, mas deveria ser uma data inesquecível. Lembrou-se de Balzac de como temera, em tempos distantes, o dia em que fizesse trinta anos. Agora não se importava mais. Ela era uma balzaqueana e isso não tinha a menor importância.
Precisava entrar. Deu um longo e alto assobio e logo eles começaram a chegar: seus cães. Não entraria em casa sem eles. Enquanto esperava, examinava a lata e as flores, como se pudesse assim, decifrar o mistério. Nunca recebera antes, tão belas. Levantou cuidadosamente o buquê, ele havia colocado água na lata... e o dinheiro?Meu Deus, ele levou meu dinheiro!Nunca se vira antes em situação tão conflitante: quem lhe dava flores e cumprimentava pelo aniversário, também lhe roubava descaradamente.
Aos poucos, procurando se acalmar, colocou a chave na fechadura que girou suavemente. Entrou, com a velha lata amarela nas mãos e logo avistou uma carteira preta sobre a mesa. Não era dela, a carteira parecia bem masculina. Colocou a lata no centro da mesa e tomou a carteira nas mãos e abriu. Quem sabe encontraria uma dica que acabaria com sua agonia?Mas não, o que encontrou foi o seu dinheiro, aparentemente sem faltar nada, mas arrumadinho, as notas maiores primeiro e logo a seguir, decrescendo, lisinhas, sem uma dobra. Não podia garantir que não faltava nada, nunca sabia direito o quanto tinha. Lembrou-se do pai e do cuidado físico que tinha com o dinheiro, dizendo sempre que era preciso cuidar bem dele, mantendo organizado e em boas condições. Mas seu pai estava morto e mortos não carregam dinheiro e nem carteira. Foi então que notou o pequeno papel cartonado em cima da mesa. Fora deixado debaixo da carteira, por isso ela não o vira, de imediato. Parecia as costas de uma fotografia. Nele estava escrito, em letras de forma: Cuide melhor do seu dinheiro, pode ficar sem ele. Perplexa, virou o papel, na esperança de que o invasor tivesse deixado ali o seu retrato. Mas o que viu eriçou-lhe todos os pelinhos dos braços – era a sua própria fotografia, assentada junto à pedra do rio, tendo nos braços Pierre, o seu bulldog francês com cara de morcego.
Ultimamente ela se sentia tensa, preocupada. Desde que o estranho entrara em sua casa, colhera o seu jardim e enfeitara a mesa de sua sala com as flores que arrancara dele, uma nuvem toldava os seus pensamentos. Quem poderia ser? A sua mente tão prática, começara a fantasiar e pensamentos enlouquecidos ameaçavam tomar conta dela. Sabia que eles tinham vida própria e por isso precisava redobrar a atenção para que não se tornassem senhores de sua vida.
Naquele dia demorara-se mais do que o costumeiro sentada junto à pedra à beira do rio. Andava com medo de voltar para casa. Queria ter mudado o cotidiano de seus cães: eles viviam soltos pelo povoado e só voltavam para se alimentarem e dormirem. Ela deixava tudo arrumadinho, já pela manhã, as latas de goiabada vazias enfileiradas com a comida deles, a água ao alcance de suas bocas sedentas. Com eles se sentia segura, mas não queria fazer de seu medo, razão para tolher a liberdade deles.
Antes de ver, sentiu. Alguma coisa estava errada, custou a perceber o que era. Mas quando percebeu, gelou...
Ela estava lá, no peitoril da janela, ao lado da porta de entrada. A velha lata amarela, de óleo de cozinha, onde guardava todo o seu dinheiro. Rosas vermelhas contrastavam com o amarelo da lata, fazendo um belo conjunto. Ele entrara novamente em sua casa, o estranho, lhe trazendo flores. Desde a primeira vez, ela passara a fechar a porta com chave antes de sair. Apalpou o bolso da velha calça jeans, a chave estava ali, não a tinha perdido. Aproximou-se vagarosamente sem saber o que olhar primeiro, com atenção: se a beleza das flores, a lata em si, para conferir se era a sua mesmo ou apenas outra, parecida, a situação da porta. Se disso dependesse a sua vida, não saberia responder: o que olhou primeiro? Mas de repente sabia que a porta estava fechada, como de costume, sem sinais de arrombamento, que a lata era a sua porque nenhuma outra poderia ter o mesmo sinal quase imperceptível de amassamento, ou o cartão escrito com letra de forma, preso ao caule de uma das rosas: Feliz aniversário.
Então hoje era o dia de seu aniversário. Havia se esquecido, mas deveria ser uma data inesquecível. Lembrou-se de Balzac de como temera, em tempos distantes, o dia em que fizesse trinta anos. Agora não se importava mais. Ela era uma balzaqueana e isso não tinha a menor importância.
Precisava entrar. Deu um longo e alto assobio e logo eles começaram a chegar: seus cães. Não entraria em casa sem eles. Enquanto esperava, examinava a lata e as flores, como se pudesse assim, decifrar o mistério. Nunca recebera antes, tão belas. Levantou cuidadosamente o buquê, ele havia colocado água na lata... e o dinheiro?Meu Deus, ele levou meu dinheiro!Nunca se vira antes em situação tão conflitante: quem lhe dava flores e cumprimentava pelo aniversário, também lhe roubava descaradamente.
Aos poucos, procurando se acalmar, colocou a chave na fechadura que girou suavemente. Entrou, com a velha lata amarela nas mãos e logo avistou uma carteira preta sobre a mesa. Não era dela, a carteira parecia bem masculina. Colocou a lata no centro da mesa e tomou a carteira nas mãos e abriu. Quem sabe encontraria uma dica que acabaria com sua agonia?Mas não, o que encontrou foi o seu dinheiro, aparentemente sem faltar nada, mas arrumadinho, as notas maiores primeiro e logo a seguir, decrescendo, lisinhas, sem uma dobra. Não podia garantir que não faltava nada, nunca sabia direito o quanto tinha. Lembrou-se do pai e do cuidado físico que tinha com o dinheiro, dizendo sempre que era preciso cuidar bem dele, mantendo organizado e em boas condições. Mas seu pai estava morto e mortos não carregam dinheiro e nem carteira. Foi então que notou o pequeno papel cartonado em cima da mesa. Fora deixado debaixo da carteira, por isso ela não o vira, de imediato. Parecia as costas de uma fotografia. Nele estava escrito, em letras de forma: Cuide melhor do seu dinheiro, pode ficar sem ele. Perplexa, virou o papel, na esperança de que o invasor tivesse deixado ali o seu retrato. Mas o que viu eriçou-lhe todos os pelinhos dos braços – era a sua própria fotografia, assentada junto à pedra do rio, tendo nos braços Pierre, o seu bulldog francês com cara de morcego.