Agenda pra que?
Para que quero marcar os dias se esses são todos iguais? Para que quero saber do tempo se estou fora dele? Ela não resistiu e escreveu essa frase, na primeira página. Tinha acabado de voltar do povoado, visita que fazia esporadicamente, para trocar seus produtos por outros que não produzia. Levava bananas, abacates, ovos, geléias e compotas e comprava arroz e feijão, açúcar e sal, queijos e produtos de higiene pessoal e limpeza. E ia ao Correio. Pouco lhe escreviam, mas de vez em quando isso acontecia. Dessa vez havia um embrulho com papel pardo, bem amarrado, o seu nome escrito em letras bem feitas que ela não reconheceu. Ficou curiosa, mas resistiu e só foi abrir o embrulho quando chegou em casa. Qual não foi surpresa ao se deparar com uma agenda: agenda pra quê foi o primeiro pensamento que lhe veio. Depois assentou-se a mesa da cozinha e foi conhecer o objeto – a capa era coberta por um tecido vermelho, estampado com flores vermelhas e folhas verdes. Abriu a primeira página e ficou ali, olhando aquela página em branco e sem nenhum pensamento levantou-se, foi até ao quarto e voltou com uma caneta esferográfica. E escreveu as primeiras duas linhas – Para que quero marcar os dias se esses são todos iguais? Para que quero saber do tempo se estou fora dele? Assinou o seu nome e daí para a frente não parou mais. Na próxima visita a venda, no povoado, tinha acrescido a sua lista de compras uma caixa de canetas esferográficas.
Não era uma agenda comum. Em cada página, além da data, havia sempre um escrito, um pensamento, um ensinamento. E ela ia lendo os escritos e conforme o que lia também escrevia. Não usava a agenda cronologicamente – abria-a diariamente e onde abria ela lia e escrevia. E assim foi contando a sua história conforme a frase lida lhe sugeria. Na terceira pessoa Como se ela mesma se observasse. Como se não fosse ela. Mas as vezes se esquecia e escrevia na primeira. Não gostava disso e então pensava: depois eu conserto, arranco essa página e escrevo outra vez. Mas nunca fez isso. E a sua história foi contada assim. Aos pulos, sem nenhuma ordem. Como era a sua vida: desordenada.
(Acabo de escrever o primeiro capítulo de meu romance:A mulher ensombrada . É incrível como aos poucos ele vai tomando forma, a partir dos temas sugeridos pelo EC. Esse tema de hoje foi um achado pois com ele achei o que poderá ser o primeiro capítulo, se eu resolver ordená-lo em capítulos)