Apenas Uma Cena de Filme
Quinze anos depois os amigos se encontram, ela e ele. Continuam formidáveis: ela um pouco mais independente; ele, desencanado com os gestos. Ambos são recém-separados.
O encontro se deu num momento quase íntimo, quinze anos depois da delícia vivida. Num chão almofadado.
Quase boca com boca:
- (ela) e não é que de um porre mal bebido veio um momento que jamais saiu da memória?
- (ele) ah, da minha, certamente.
- (ela) quer dizer que da sua também?
- (ele) quer dizer que você gostou?
- (ela) ou que nós dois gostamos.
- (ele) nada foi mais inesquecível!
- (ela) será que você gostou tanto assim mesmo?
- (ele) mais do que tudo!
- (ela) exagerado, em?
- (ele) de forma alguma!
- (ela) exagerado!
- (ele) exagero era você, que, aliás, continua um espetáculo!
- (ela) será?
- (ele) conseguiu o impossível, ficou ainda melhor.
- (ela) se você achava...
- (ele) achava e ainda acho!
- (ela) ...por que então escondeu tanto assim?
- (ele) como assim?
- (ela) ninguém, além de nós, soube daquele dia...
- (ele) e isso não é bom?
- (ela) e se de repente você não gostou tanto assim?
- (ele) impossível! Foi a melhor coisa da minha vida. Aquele dia e hoje.
- (ela) hoje?
- (ele) sim, estou em pólvoras... Soube que você adorou aquele dia.
- (ela) ah, por isso...
- (ele) você me fez feliz e arrependido... que misto gostoso: para mim, apenas eu é quem lembrava, e agora, que quinze anos mais perdidos!
- (ela) perdidos?
- (ele) sim... desperdiçamos quinze anos...
- (ela) ah, sim... viver de memória é realmente um embargo.
- (ele) justamente!
- (ela) e vamos compensar?
- (ele) a memória?
- (ela) que tal a nós mesmos?
Boca com mais boca ainda. As palavras são apenas calor.
- (ele) para mim você só fez aquilo porque estava bêbada!
- (ela) sim...!
- (ele) está vendo?
- (ela) mas foi o melhor porre da minha vida... Santa marguerita!
- (ele) porre de marguerita, foi?
- (ela) marguerita e vodca.
- (ele) que mistura!
- (ela) santa mistura!
- (ele) comigo foi o oposto! Fiquei de porre foi de lá pra cá.
- (ela) então somos dois nesse contrário.
- (ele) assim vou pular a janela pra testar a realidade... Tanta alegria assim só deve ser mentira...
- (ela) exagerado!
- (ele) é sim, muita alegria... Alma eufórica! Alma eufórica!
- (ela) exagerado!
- (ele) exagero nenhum...
- (ela) então por que ninguém mais soube daquilo que houve entre nós?
- (ele) mas isso é um mérito!
- (ela) mérito?
- (ele) pois o comum não é que as mulheres aprovem o sigilo?
- (ela) sim, claro...
- (ele) então!
- (ela) mas quando gostamos muito de uma coisa, é impossível conservá-la!
As mãos agora provam dos aquecimentos das palavras. Quase tocam as sensações dos dois.
- (ele) ocorre que eu não podia revelar o meu trunfo... O sonho realizado.
- (ela) por que não, senhor exagerado?
- (ele) exagero foi a minha sorte aquele dia, simples!
- (ela) não me convenceu...
- (ele) pra que revelar?
- (ela) você tinha medo que eu negasse ou justificasse uma amnésia alcoólica, é?
- (ele) não, mas pense você...
- (ela) penso...
- (ele) imagine quem soubesse: você não merecia que os outros homens soubessem que você, desejo coletivo, um dia me fez o mais feliz dos felizes...
- (ela) por que não?
- (ele) vai que a tornasse vulgar...
- (ela) bobagem!
- (ele) imagine então o que pensariam as pessoas de nós dois juntos?
- (ela) então?
- (ele) as piores duvidariam, cairiam sobre você com uma inveja despossuída de mim. Já as melhores me aceitariam como a um hóspede requisitado, alguém digno de reverência.
- (ela) exagerado!
- (ele) exagero é o que eu senti nesses quinze anos.
- (ela) e agora?
- (ele) estou pensando em lhe oferecer um drinque.
- (ela) será que precisa?
- (ele) pois é... quinze anos não são quinze dias...
- (ela) pois é...
- (ele) não é?
- (ela) e então, no que mais você está pensando?
- (ele) em como serão os nossos próximos quinze anos...
Um aroma daqueles melhores saudosos de suas vidas realmente saiu da tela. Quem viu a cena percebeu rapidamente. E insistiu em não querer deixar a sala.