Eta vida besta, meu Deus! (EC)
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.


Carlos Drummond de Andrade

Demorou mais a sair do que pensara. Depois que colocou as mercadorias na carroceria da caminhonete, as bananas empilhadas de forma a não se amassarem, os vidros de geléias e compotas organizados dentro de caixas para não se quebrarem, ainda foi até a pedra cismar.As águas barrentas do rio iam bem além de suas margens usuais depois daqueles dias enchuvados. Chegavam até a pedra, sempre protegida da umidade, mas não agora. Não havia como sentar-se ali e apascentar os sonhos no ar. Mesmo assim, de pé,olhando o fluxo pesado das águas, demorou-se mais do que pensara, divagando.

O irmão ligara no dia anterior. O negócio fora fechado, o dinheiro já estava no banco. Poderia agora, viver de papo para o ar, foi o que ele disse, E acrescentou, rindo desagradavelmente: como se você já não vivesse.

Não pensou que a situação fosse afetá-la. Mas desde que recebera a ligação ficara triste e não conseguia pensar em outra coisa. A Fazenda finalmente fora vendida, para alegria de todos. Aqueles que realmente se importavam com ela, estavam mortos. O pai. Os dois irmãos mais velhos. 
 
Ficou pensando naquele tempo em que fora fazendeira do ar. Não porque criasse abelhas, mas porque as condições climáticas a deixavam completamente desnorteada: vivia de olhos abertos e ouvidos em pé, sempre preocupada com a chuva e a estiagem que nunca vinham na hora certa. Se precisava  de uma era sempre a outra que chegava, atrapalhando suas colheitas de milho e feijão, deixando as vacas sem pasto natural e ela sempre tendo que fazer alguma coisa que não queria fazer. Se ocupando de coisas para as quais não nascera. Foram tempos difíceis aqueles em que ela se vira obrigada a cuidar da Fazenda. Quando finalmente tomou a decisão e abandonou tudo, sentiu um grande alívio. Por isso não compreendia a tristeza de agora. A Fazenda fora vendida. O Sítio, como sempre o chamavam, pela constância da modéstia familiar. Não era mais deles. Aquele pedaço de terra semi  abandonado, que agora seria retalhado em lotes e ocupados por casas, realizando o sonho de muitos. Eles ficariam com o dinheiro e ela pensou no pai, que mesmo morto continuava a nutrir. Pensou no irmão, que sempre precisara do dinheiro e que morreu sem tê-lo, usufruindo das terras, mas não frutificando-as. Pensou nela, que vivia em um enorme pedaço de terra, repleto de pequenas casas abandonadas, nenhuma sendo realmente dela, nem aquela que ocupava. Pensou nos lírios dos campos, pensou nos pássaros e nas abelhas que anunciavam a manhã que chegava e empurrou a tristeza para um buraco oculto dentro dela. Pensou no Poeta enquanto ia em direção a velha caminhonete e concluir como em seu poema, enquanto olhava a vida ao seu redor:
Eta vida besta, meu Deus!  
http://encantodasletras.50webs.com/fazendeiro.htm
 
Trecho do romance inacabado A Mulher Ensombreada.