Amores Visitadores

Seu Serafim colecionava poses: trazia das marinas antigas a mulher direta. Detestava, naquele agora, lembrar-se das outras: fosse a de gesto rudimentar, seja a com gesto de ourivesaria, tampouco a sem gestos.

Não que nele estava algum agravo dos humores, bem verdade era Seu Serafim um despossuído de humor. Nem bom nem mau, apenas não lhe havia. Contrastava com as irmãs portuguesas, cada qual ocupando a casa herdada no testamento secular, mas a elas havia sempre um grunhidinho com sorriso vindo de algum canto: andavam sempre juntas e dispostas a observar: será falha, estarão ali para acusar: uns sorrisinhos, cada uma com um, e depois o grunhido. Admirava a quem os via a forma mais rangida de família.

O desgaste estava na cara. Ocorre que durava décadas. Mas ainda preocupava.

Menos tido com as conversas de ultimamente, Seu Serafim apenas condicionou os tempos últimos a separar a sua coleção. Era preciso encontrar a cova suficiente para que nenhuma das irmãs lhe descobrisse o segredo. Segredo? Não era bem um segredo. Tornou-se. Era ele um homem acuado, desgostava com o tempo já vencido, implorava por encontrar alguma esperança perdida entre os objetos de colecionador. Embaralhou-se novamente a cada procura inculta. E assim fez, nove anos e tantos dias, até que se viu diante do olho de boi:

– Para um bom paciente, a cura está na espera!

Fez pose de quem colecionava poses. Encontrou na memória uma escandinava do interior mineiro, sulista sem sotaque e nem rodeios. Importunava-lhe tê-la esquecido na estante das impossibilidades, já que das facilidades é que Seu Serafim jamais abriu mão. Olhava-se sem mira num espelho velho, o qual o preparou tantas vezes para as noites frustradas, nem lhe preocupou a situação da antiga amiga, apenas importava é que estivesse ela ainda viva. Foi em busca. Encontrou. Buscou.

Lá está ela, intacta nuns oitenta anos. Era ela mais velha quando Seu Serafim tatuava uma âncora no braço como significasse os dizeres “olha quem manda aqui!” e parecia mais velha ainda que a diferença havida entre os dois. Tocou-a com as pontas dos dedos sem diligências, e percorria a cabeça toda pela posição de encontrar alguma novidade. Acontece que a aquela altura qualquer novidade pareceria obsoleta: se uma parecesse, seria. Mas foi.

Quantos amores uma moça da vida teve?, pensou ele. Eis que a condição da holandesa interiorana era pior do que tivesse a morte na história já contada: perdera, pelo tempo, filhos à dúzia, e mais: foi a mulher de cada porto sem nunca, jamais, de modo outro algum, ter saído do cais santista: pior, reconhecida como escritora. Mais ainda? Pois que dela saíram inúmeras inspirações para movimentos feministas, referências para leis, mote de cinema. Contradição à vista: dinheiro? Nenhum. Aprendeu com os homens que aos homens pertenciam os bens materiais. Lição de casa bem feita: doou centavo a centavo a cada um dos homens travestidos de amantes, prometidos de marido. Ficou só e sem a história reservada. Pensou ele, se houve amores, quantos fui? Por que não?

Arrancou dela um beijo sem travessias. Foi direto. Como direto havia sido no trato com as mulheres, do mesmo modo cru que as paisagens sensuais lhe batiam os desejos quando ainda exibia a altivez da forma. Parecia que passava pela sala com desejo de não ser percebido.

Mas as irmãs estavam lá. Sentinelas e perpétuas. Irmãs sem forma feminina nem para os aspirantes a cunhados.

Um beijo era apenas o pé da conversa. Conservava-se na certeza de que mil e oitocentos quilômetros dobrados para resgatar um amor perdido valem qualquer pesar. Despiu-a com pressa. Ela já mostrava o jeito perdido, mas o reflexo era natural, a liberdade para intromissões também. Deixou-a de joelhos e postou-se em pé à frente da antiga amiga, aquela de gênio mais impossível, a quem nenhuma lição valia o esforço. Lembrou-se paliativamente de tudo o que lhes houvera, e passou então a rogar-se de um perdão que não cabe a um homem previamente dedicado a nunca exibir sentimentos. Era muita violência, coisa de qualquer gratuidade descabida. Seu Serafim usava de gestos que até então, na idade da força, fazia questão de colecionar. A cada mulher bem disciplinada, a cada máquina de prazer bem ajustada, Serafim dedicava um risco tatuado, o mesmo que os detentos usam nas paredes em forma de calendário. Ocorre que Seu Serafim, naquele agora ali, desejava uma memória prestante.

A amiga, de joelhos, aguardava as lições, as ordem, ou o que fosse de desejo do homem em pé à sua frente. Justo a amiga que jamais se curvava ao jovem Serafim temor de todos da orla portuária paulista. Agora um lapso de exigências, e lá estava ela, serva de aguardo, pronta.

Seu Serafim estava velho para esconder as coisas. Desnudou-se. Pegou pela mão a antiga amiga e puxou-a com ar de surpreender. Saíram os dois pela avenida densa e barulhenta, os dois, velhinhos, nus. Ela, que apenas caía como um objeto. Ele, que só escarrava sentimentos. Ninguém os percebia: cruzavam pontes, praças, lojas. Saíam por onde queriam e entravam por quem não estava.

Duraram mais alguns dias nessa euforia. Seu Serafim voltou, após, a colecionar poses. Da amiga nunca mais se ouviu falar. Interessante é que a sua figura não participa mais da coleção que Seu Serafim agora embaralhava com desânimo profundo.

E, avisando sobre uma nova e curiosa lei mostrada na televisão, a mais velha das irmãs veio à frente das outras e bateu-lhe à porta da tarde com o fato:

– Que curioso! A partir de agora é permitido que idosos de verdade saiam à vontade pelas ruas. Aos velhinhos não se acusa mais de atentado ao pudor. Boa lei para tu, que é maluco por aí, em maninho Serafim?

Saíram pelo corredor com umas risadinhas e uns grunhidos intolerantes.