O palhaço

- Nossa... ele era uma figura...

Souza, deitado no centro de tudo, ouvia de uma forma diferente: os sons chegavam claramente a seus ouvidos, mas era como se ele não estivesse ali. Sentia a presença das pessoas, reconhecia-as pelas vozes – aliás, muito nitidamente, como jamais houvera feito – mas não se sentia presente naquele evento. Na verdade, o que ele não entendia ainda muito bem é que o evento era em sua homenagem.

- Nem fale... se ele pudesse falar aqui, agora, ia contar aquelas piadas de velório que ele sempre contava, lembra?

Queria contorcer a face em sinal de reprovação, mas quem disse que seus músculos o obedeciam? Não estava a fim de brincadeiras. As piadas que contava eram ironias para com os rituais, nada a ver com graça... não entendiam?

- Piadas e tudo mais que ele aprontava... lembra no velório do Sinésio? Ele fez de conta que o defunto estava sussurrando alguma coisa no ouvido dele... e caiu na risada, apontando a Doroty! Ela ficou possessa!...

A Doroty merecia, caramba. Era uma mulher esnobe e vazia. Queria gritar que não estava achando engraçada aquela história, que na verdade era uma crítica e não uma piada, mas a voz não lhe saía.

- Uma figura mesmo, o Souza.

Figura? Era assim que eles o viam, figura? Tentou mexer a mão para fazer um sinal obsceno que todos entenderiam, mas o braço não respondeu. Nem a mão. Estava furioso. Ele era um crítico da sociedade, isso sim!

- Vai entrar pra História como o cara mais engraçado que eu conheci. Um verdadeiro palhaço!

Aquilo foi demais. Ele, um palhaço... Ele, um observador do ser humano, um cronista atento das relações sociais, um antropólogo irônico...

- Vamos sentir falta dele.

Ele não podia gritar que, por sua vez, não iria sentir falta daquele bando de ignorantes que nunca entenderam o propósito primeiro de suas colocações sarcásticas. Não conseguiu dar de ombros mas acalmou-se, pois teve uma ideia. Quando chegasse onde tinha que chegar, chamaria o chefe e pediria uma nova estadia por aqui. E, nessa próxima parada - doce vingança! - faria o contrário: zombaria descaradamente de todos com a maior desfaçatez mas ninguém riria e, pelo contrário, todos o respeitariam e o levariam extremamente a sério. Bastava reencarnar como deputado.

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Este texto faz parte do Exercicio Criativo:

"Como você gostaria de ser lembrado?"

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