Orelhas
A mulher estava assentada em frente ao espelho, no Salão de Beleza. Olhava para o próprio rosto, com desconfiança. Quem seria aquela mulher, assim tão séria, assim tão velha? Não, não era ela. Uma estranha se apossara de seu rosto e agora a fitava, do outro lado do espelho. Estaria tão espantada quanto ela, assim ao fitá-la, do lado de lá?
Sobressaltou- se quando ouviu a Cabeleireira perguntando a cor da tinta que passaria em seus cabelos. Ela nunca soubera. Deixava a escolha por conta de quem os pintava, aceitava mansamente as sugestões. Já ia longe o tempo em que se importava, quando pintar não era uma precisão, mas uma emoção. Quero ser ruiva, dizia e ruiva ficava. Mesmo assim nunca soubera nem a cor nem a marca da tinta usada. Procurou uma resposta quando a Cabeleireira repetiu a pergunta e se sentiu vitoriosa quando respondeu: a mesma que você colocou da última vez. Notou, através do espelho, o sobressalto da moça, pelo rápido piscar de olhos. Ela não poderia confessar que não anotara a cor da tinta, da última vez. Talvez não esperasse que a mulher voltasse ali. Não era uma freguesa habitual. Mas o espanto foi rápido e ela recobrou o controle profissional e começou a trabalhar com afinco na mistura química.
A mulher resolveu voltar a contemplação daquela outra do lado de lá do espelho,mas foi interrompida ainda na decisão: alguém colocara em suas mãos algumas revistas. Contemplou as capas sem maior interesse para escolher a que veria. Sim, veria. Certamente não havia ali nada para ler, só ver. Foi descartando uma a uma até que viu, na última delas, uma chamada. Um nome. Uma atriz que estava entre as selecionadas para receber vários prêmios como a melhor do gênero, naquele ano. Bem, a mulher pensou, vou ver como ela está. Lembrou-se de sua já distante juventude. Lembrou-se da paixão que sentira pelo ator que hoje era o marido daquela atriz. E começou a virar as páginas da revista. Distraiu-se completamente, esqueceu-se daquela outra lá, do outro lado do espelho. Esqueceu-se da reportagem que se dispusera a ver. Esqueceu-se de que alguém mexia em sua cabeça lambuzando de tinta os seus cabelos. E página a pagina ia vendo as fotos e pensando na vida que não tinha e nem quisera ter. Viu as roupas, os cabelos, e os sorrisos dirigidos ao fotógrafo. Viu novos casais se formando, casais que há pouco tempo faziam parte de outras duplas. Viu a vida em movimento, uma vida cheia de riqueza, beleza e glamour. Algumas mulheres estavam bem diferentes do que ela se lembrava. Os rostos bem esticados querendo sugerir uma idade que não mais tinham, mas só fazendo lembrar uma passagem diferente do tempo. Custava caro aquela aparência, sem rugas e sem expressão. Lábios cheios, olhos repuxados, como bonecas de porcelana. A mulher olhou para o espelho outra vez, dessa vez com mais simpatia. Nada viu que fosse falso, que sugerisse uma tentativa de encobrimento do que vivera. Só os cabelos, mas isso não conta, pensou ela. Mesmo esse problema seria resolvido um dia, pensou. Faltava coragem para essa atitude drástica, mas sabia que era uma questão de tempo.
Foi então que seu coração quase parou, deu um pulo, um salto, quase arrebentou as paredes que o aprisionavam. Queria pular fora. Levou a mão ao peito como se isso pudesse impedir a fuga do coração tresloucado. Teve medo que a atendente percebesse o seu desconforto, a sua emoção. Lá estava ele, em página inteira, o amado e ela, a sua mulher, com outros participantes da festa. Sorriam para o fotógrafo para mostrar a sua importância. Estavam felizes. Primeiro ela ficou olhando a mulher dele: bem vestida, elegante, em uma roupa dourada, luxo puro. Achava tão ridículo. Lá vinha o nome, entre parênteses a idade, o nome do costureiro. A mulher pensou, desconsolada: nunca ninguém colocaria em frente ao seu nome, em foto nenhuma, o nome de seu costureiro. A mulher não tinha costureiro. Nem roupa dourada para vestir, nem festa para ir e depois ver sua foto no jornal ou na revista.
A mulher sabia o que estava acontecendo: pensava coisas na vã tentativa de se distrair antes de olhar para ele. Mas não adiantava continuar fugindo. Ela tinha que olhar. Tinha que enfrentar mesmo que não fosse cara a cara e sim cara e papel. Já enfrentara outras situações cara a cara e se sentira vencedora. Não iria recuar agora. E então, ela olhou: o rosto pelo qual se apaixonara na adolescência e que colocava em outros rostos durante anos em um exercício de comparação em que ele sempre se saíra vitorioso. Lembrou-se da noite em que o vira pela primeira vez: estava assentada na cozinha de sua casa, na distante vila onde nascera. Lia um jornal. Foi então que o viu: uma pequena foto em preto e branco e desde então ficou irremediavelmente perdida. Passou a acompanhar a sua trajetória pessoal e profissional. Assistiu a todos os filmes que fez, durante muitos anos. Foi só com o tempo que ele acabou caindo no esquecimento e nem foi um esquecimento total. Lembrava dele de quando em vez embora não mais se permitisse sonhar nem procurar seu nome em revistas. E agora ele estava ali e seus olhos se recusavam a olhar. Tinha medo, quem sabe, de que ele pudesse também vê-la em toda a sua decadência. Imbuída de um esforço derradeiro, olhou. E o que viu deixou-a sem fala. Nem conseguiu responder quando a atendente lhe perguntou para que lado queria que seu cabelo fosse escovado. Fez um gesto de não importa e continuou olhando a foto. Não, onde estava o grande homem que embalara suas fantasias românticas? Aquele ali, de estatura normal, não podia de jeito nenhum ser ele. E o rosto, para que um rosto tão grande, tão desproporcional ao corpo? Uma cabeçorra, pensou. Lembrou-se dos tempos de escola quando a professora, dando uma lista de palavras, pedia-lhes que escrevesse na frente de cada uma o aumentativo e o diminutivo. Santo Deus, ele tinha uma cabeçorra! Mas o golpe final veio com as orelhas: enormes, imensas. Voltou aos tempos de infância e ao choque que tivera quando, conhecendo um velho tio, percebeu o tamanho de suas orelhas. Ficara tão impressionada que tivera pesadelos. Foi aí que lhe informaram que as orelhas nunca param de crescer e ela passou a vida conferindo as suas, pequenas, bonitas. Agora ao ver as orelhas apontando para cima e para baixo, riu, baixinho: ainda bem que foi apenas sonho. E quando a atendente lhe perguntou se o cabelo tinha ficado bom, aproximou-se do espelho, levou o cabelo para trás das orelhas e rindo feliz, pela primeira vez naquele dia, disse: ficou ótimo. Mas certamente não estava se referindo aos cabelos.
Sobressaltou- se quando ouviu a Cabeleireira perguntando a cor da tinta que passaria em seus cabelos. Ela nunca soubera. Deixava a escolha por conta de quem os pintava, aceitava mansamente as sugestões. Já ia longe o tempo em que se importava, quando pintar não era uma precisão, mas uma emoção. Quero ser ruiva, dizia e ruiva ficava. Mesmo assim nunca soubera nem a cor nem a marca da tinta usada. Procurou uma resposta quando a Cabeleireira repetiu a pergunta e se sentiu vitoriosa quando respondeu: a mesma que você colocou da última vez. Notou, através do espelho, o sobressalto da moça, pelo rápido piscar de olhos. Ela não poderia confessar que não anotara a cor da tinta, da última vez. Talvez não esperasse que a mulher voltasse ali. Não era uma freguesa habitual. Mas o espanto foi rápido e ela recobrou o controle profissional e começou a trabalhar com afinco na mistura química.
A mulher resolveu voltar a contemplação daquela outra do lado de lá do espelho,mas foi interrompida ainda na decisão: alguém colocara em suas mãos algumas revistas. Contemplou as capas sem maior interesse para escolher a que veria. Sim, veria. Certamente não havia ali nada para ler, só ver. Foi descartando uma a uma até que viu, na última delas, uma chamada. Um nome. Uma atriz que estava entre as selecionadas para receber vários prêmios como a melhor do gênero, naquele ano. Bem, a mulher pensou, vou ver como ela está. Lembrou-se de sua já distante juventude. Lembrou-se da paixão que sentira pelo ator que hoje era o marido daquela atriz. E começou a virar as páginas da revista. Distraiu-se completamente, esqueceu-se daquela outra lá, do outro lado do espelho. Esqueceu-se da reportagem que se dispusera a ver. Esqueceu-se de que alguém mexia em sua cabeça lambuzando de tinta os seus cabelos. E página a pagina ia vendo as fotos e pensando na vida que não tinha e nem quisera ter. Viu as roupas, os cabelos, e os sorrisos dirigidos ao fotógrafo. Viu novos casais se formando, casais que há pouco tempo faziam parte de outras duplas. Viu a vida em movimento, uma vida cheia de riqueza, beleza e glamour. Algumas mulheres estavam bem diferentes do que ela se lembrava. Os rostos bem esticados querendo sugerir uma idade que não mais tinham, mas só fazendo lembrar uma passagem diferente do tempo. Custava caro aquela aparência, sem rugas e sem expressão. Lábios cheios, olhos repuxados, como bonecas de porcelana. A mulher olhou para o espelho outra vez, dessa vez com mais simpatia. Nada viu que fosse falso, que sugerisse uma tentativa de encobrimento do que vivera. Só os cabelos, mas isso não conta, pensou ela. Mesmo esse problema seria resolvido um dia, pensou. Faltava coragem para essa atitude drástica, mas sabia que era uma questão de tempo.
Foi então que seu coração quase parou, deu um pulo, um salto, quase arrebentou as paredes que o aprisionavam. Queria pular fora. Levou a mão ao peito como se isso pudesse impedir a fuga do coração tresloucado. Teve medo que a atendente percebesse o seu desconforto, a sua emoção. Lá estava ele, em página inteira, o amado e ela, a sua mulher, com outros participantes da festa. Sorriam para o fotógrafo para mostrar a sua importância. Estavam felizes. Primeiro ela ficou olhando a mulher dele: bem vestida, elegante, em uma roupa dourada, luxo puro. Achava tão ridículo. Lá vinha o nome, entre parênteses a idade, o nome do costureiro. A mulher pensou, desconsolada: nunca ninguém colocaria em frente ao seu nome, em foto nenhuma, o nome de seu costureiro. A mulher não tinha costureiro. Nem roupa dourada para vestir, nem festa para ir e depois ver sua foto no jornal ou na revista.
A mulher sabia o que estava acontecendo: pensava coisas na vã tentativa de se distrair antes de olhar para ele. Mas não adiantava continuar fugindo. Ela tinha que olhar. Tinha que enfrentar mesmo que não fosse cara a cara e sim cara e papel. Já enfrentara outras situações cara a cara e se sentira vencedora. Não iria recuar agora. E então, ela olhou: o rosto pelo qual se apaixonara na adolescência e que colocava em outros rostos durante anos em um exercício de comparação em que ele sempre se saíra vitorioso. Lembrou-se da noite em que o vira pela primeira vez: estava assentada na cozinha de sua casa, na distante vila onde nascera. Lia um jornal. Foi então que o viu: uma pequena foto em preto e branco e desde então ficou irremediavelmente perdida. Passou a acompanhar a sua trajetória pessoal e profissional. Assistiu a todos os filmes que fez, durante muitos anos. Foi só com o tempo que ele acabou caindo no esquecimento e nem foi um esquecimento total. Lembrava dele de quando em vez embora não mais se permitisse sonhar nem procurar seu nome em revistas. E agora ele estava ali e seus olhos se recusavam a olhar. Tinha medo, quem sabe, de que ele pudesse também vê-la em toda a sua decadência. Imbuída de um esforço derradeiro, olhou. E o que viu deixou-a sem fala. Nem conseguiu responder quando a atendente lhe perguntou para que lado queria que seu cabelo fosse escovado. Fez um gesto de não importa e continuou olhando a foto. Não, onde estava o grande homem que embalara suas fantasias românticas? Aquele ali, de estatura normal, não podia de jeito nenhum ser ele. E o rosto, para que um rosto tão grande, tão desproporcional ao corpo? Uma cabeçorra, pensou. Lembrou-se dos tempos de escola quando a professora, dando uma lista de palavras, pedia-lhes que escrevesse na frente de cada uma o aumentativo e o diminutivo. Santo Deus, ele tinha uma cabeçorra! Mas o golpe final veio com as orelhas: enormes, imensas. Voltou aos tempos de infância e ao choque que tivera quando, conhecendo um velho tio, percebeu o tamanho de suas orelhas. Ficara tão impressionada que tivera pesadelos. Foi aí que lhe informaram que as orelhas nunca param de crescer e ela passou a vida conferindo as suas, pequenas, bonitas. Agora ao ver as orelhas apontando para cima e para baixo, riu, baixinho: ainda bem que foi apenas sonho. E quando a atendente lhe perguntou se o cabelo tinha ficado bom, aproximou-se do espelho, levou o cabelo para trás das orelhas e rindo feliz, pela primeira vez naquele dia, disse: ficou ótimo. Mas certamente não estava se referindo aos cabelos.