Mulher em frente ao espelho
Em frente ao espelho a mulher olhava o seu rosto refletido e pensava: nada mau, o tempo não foi tão inclemente assim. As poucas rugas de expressão não atestavam a sua idade. Já vira piores, em rostos mais jovens. Mas a linha esbranquiçada na raiz dos cabelos a aborrecia profundamente – contra isso não havia solução que não fosse química. Idéia de desmazelo é o que essa linha denotava. Bem, não pode ser hoje, pensou, tenho muito que fazer. E voltou a escovar os dentes freneticamente enquanto da cozinha subiam os sons do almoço servido.
A mulher tinha acabado de tomar banho e ainda não se vestira completamente. Estava quente, muito quente. Há tempos podia ter parado com tudo, fazer só o que realmente gostava, sem nenhuma obrigação. Nunca soubera viver sem obrigação. Fazia as coisas porque tinha que fazê-las embora sem saber por ordem de quem. Seria mais uma tarde de serviço rotineiro, com pouco retorno. Seria mais um dia em que fazia as coisas porque precisava fazê-las e nada mais. Um cheiro bom de comida quente entrou pela janela e a mulher lavou a boca com água, o sabor da pasta de dente impregnando seu paladar. Foi então que a mulher levantou a cabeça e olhou novamente no espelho. E o que viu deixou-a profundamente assustada.
A mulher estava olhando no espelho e pensou nas torres gêmeas que tantas vezes vira desmoronar através das imagens na televisão. A mulher viu que estava desmoronando como uma das torres gêmeas. Como se alguém a tivesse tocado devagarzinho e a empurrado para a esquerda. Sim, ela estava caindo. E aí, em um instante de tempo tão pequeno, ela se sentiu vivendo a eternidade. Percebeu que caia porque sua perna tinha desaparecido. Ela estava sem a perna esquerda. A mulher nem mesmo sabia que era esperta, mas agiu como se fosse. Segurou-se com força na bancada da pia com a mão direita e com isso a queda foi atenuada. A mulher caiu e percebeu que não poderia se ajudar. E então gritou com todas as forças que tinha. A mulher ainda pensou: menos mal, não perdi a voz.
Lá embaixo, na cozinha ouviram a voz da mulher que gritava. Almoço interrompido, a mulher logo recebeu ajuda. E a mulher toda poderosa que sempre resolvia tudo sozinha teve que se sujeitar a receber ajuda. E se entregou a vontade alheia certa do que já estava certa há muito tempo – não se pode definir o que vai ser, nunca. É preciso sempre se adaptar ás novas situações. Mas a mulher ainda pensou: seja lá o que foi que aconteceu, a minha cabeça ainda está aqui, intacta. E eu posso voar tão longe quanto quiser.