UM XIXIZINHO LIGHT

UM XIXIZINHO LIGHT

- Moço, são cinqüenta centavos para usar o banheiro – disse tão simpaticamente a garota que barrava a passagem para o dito cujo.

Monjolo nunca foi um cara de sorte! Ao contrário! Sessentão, razoavelmente instruído, desprezado pelo mercado de trabalho, mas sobrevivente pela polpuda aposentadoria, um salário-mínino. Restava-lhe sua diversão predileta: caminhar, caminhar, caminhar pelo centro da cidade. E também comer ou colecionar coisas de graça. Ah! tem mais: hipertenso e diabético, escolhia sempre circular por lugares com banheiro à disposição. E São Paulo não prima pela quantidade de banheiros públicos! Se é que tem banheiros públicos!

Monjolo gelou! Bexiga a pleno, efeito do diurético da sua hipertensão! E ele a zero, sem nem um único tostão no bolso, quanto mais cinqüenta centavos!! Esse péssimo hábito de andar sem dinheiro! Droga! Não bebia, não fumava, andava a pé, não bebia cafezinho ou refrigerantes, água só de graça, dinheiro pra quê?!

Mas a bexiga exigia com enfurecido fervor o seu sagrado direito de esvaziar-se. E ela tinha razão: a função dela, sem greve ou reivindicações trabalhistas, é encher-se e esvaziar-se sempre, elasticamente, até para nossa própria segurança e conforto. Ouviu o que a moça disse, viu a reação de Monjolo e deu uma pontada mais forte do que antes, uma espécie de “quem avisa amigo é”, amiga, no caso. Ele contraiu por instinto as pernas e fez o que pôde. A bexiga há muito já estava no seu limite.

As pessoas atrás dele já estavam impacientes. O corredor era estreito, por uma portinhola se entrava, pela outra se saía, com mecanismos próprios, sem outra chance. E ele na frente da portinhola de entrada, atravancando tudo, sem condições físicas reais naquele momento de arredar pé dali. E ninguém entendia isso! O terceiro da fila, também muito impaciente (vai saber de suas próprias necessidades!!!) o olhava com aquele olhar de condenação total, batendo “delicadamente” os pezinhos no chão.

- Mas, moça, estou sem nenhum aqui e tenho de ir ao banheiro de qualquer jeito, sob pena de algo gravíssimo acontecer – tentou argumentar com seu nível culto de linguagem. E colocou uma ênfase desesperada e aguda no “gravíssimo”.

E não era mentira! No período da manhã, o remédio dele atua muito e ele precisa sempre ter algum banheiro à mão. E aquele era o banheiro da vez. O único! Um baita shopping, apesar de light (era o Shopping Light), enxuto, com tudo no lugar, rico, e querendo cobrar por uma humana e natural mijadela! Um absurdo! Sentiu um pingo na cueca!! Era a natureza em conflito com o social! Ou com o econômico!

- Não é possível, senhor (agora já o chamou de senhor, deixou aquele delicioso “moço” de lado e formalizou a relação!) – Essas são as ordens que tenho, são as normas do Shopping, senhorrrrrr! – E carregou ainda mais nesse horrendo senhor, como se estivesse passando em Monjolo uma lixa 16!! – O senhor é que tem de resolver seu problema, senhorrrrrr! - repetiu enfática, com a antipatia típica dos antipáticos que acham que nada têm que ver com o problema.

Monjolo exasperou-se mas se conteve. Ele precisava aliviar todas as suas tensões, principalmente a física. Mas não saiu do lugar, mesmo porque ele já não conseguiria andar pra trás. No máximo só alguns passos pra frente. O mictório estava ali, a apenas três metros adiante. A fila atrás dele já tinha umas vinte pessoas, todas batendo o pé:

- O que está acontecendo aí na frente, caralho – rosnou um mal-educado lá de trás.

- Essa porra não anda, caralho – berrou outro, aproveitando o embalo. E cada vez que falavam “caralho” ele sentia uma pontada e uma minúscula mas perceptível esguichadela na cueca.

- Puta que pariu, eu estou apertado, porra, essa merda de fila anda ou não anda, caralho – explodiu um mais enfezado, e talvez literalmente enfezado mesmo! As moças só se encolhiam, premidas também pelas suas próprias necessidades e pela grosseria dos algozes de Monjolo.

- Moça, acho melhor você me liberar e evitar confusão, o pessoal tá perdendo a paciência, senhorita, por favor, é só um xixizinho, eu não consigo andar mais que três metros com a bexiga cheia desse jeito, a coisa tá preta, me deixa, por favor! Que culpa tenho de não ter dinheiro, moça! Pelo amor de Deus! – apelou de vez.

E ela inflexível, com a calma dos que estão com as necessidades absolutamente em dia!: “Não posso não, senhor! Acho melhor o senhor sair da fila e dar passagem” – falou com o ar da superioridade de uma bruxa de bexiga vazia.

- É isso, sai, sai, sai, sai, vai mijar no mato, velho caquético, dá passagem aí, velhote, sai, foda-se, cai fora, imbecil, rosnavam vozes ferozes atrás dele e começou um movimento de empurra daqui, empurra dali, mas ainda havia relativa calma. E tome pés impacientes e irritados batendo os bicos no chão, Parecia um show de sapateado, descompassado na irritação de suas batidas necessitadas. Monjolo sentiu outro empurrãozinho, nova esguichadinha, a cueca começando a se molhar de fato e a passar sua molhadeira para as calças! Desespero! Angústia! Apreensão! Suor!

- Moça, pelo amor de Deus, entenda, eu não tenho condições de me deslocar daqui, não tenho cinqüenta centavos nem centavo nenhum, pelo amor de Deus, senhorita, eu preciso, é uma questão de mijar ou... mijar – continuou a apelar.

Pra que que ele falou isso? Começou um coro indecoroso atrás dele:

- Mija, mijão, mija, mijão, mija, mijão, mija nas calças, mijão, mija nas calças, mijão!! Eram umas trinta vozes urrando essa verdadeira palavra de ordem, atraindo, finalmente, dois brucutus-segurança do Shopping. Aproximaram-se e, enfurecidos com a baderna, porém contidos, como manda a profissão e a razão, foram logo e democraticamente questionando:

- O que está havendo aqui, senhorita, por que essa fila não anda? Não vê que começa a invadir as lojas?

Era verdade! A fila extrapolou o corredor dos banheiros e seus ocupantes invadiam as lojas, fora o tumulto dos curiosos querendo saber o que se passava. Os banheiros vazios! e a bexiga de Monjolo explodindo! Que contraste!

- É que esse senhor aqui se recusa a pagar para usar nossos banheiros – falou empafiosa, como se recebesse dez centavos por mijada que os clientes dessem nos perfumados banheiros do Shopping Light.

- Não é que me recuso – tentou se defender, já muito envergonhado e ligeiramente molhado – é que não tenho dinheiro mesmo e também já não tenho condições de chegar a qualquer outro banheiro. Só preciso urgentemente dar uma mijada, pelo amor de Deus! E, completamente fora de si agora, abriu o zíper das calças, tirou a genitália pra fora, murchinha como tinha de ser e molhada como não deveria estar! A garota, ciosa de suas funções e ociosa desde que o coroa empacou à frente da portinhola de entrada, absolutamente impassível, sem sequer dar uma olhadela para ver como que era, repetia, repetia, repetia: “são ordens, são ordens, são ordens, só se pode usar pagando,...”

Mas o brutamonte, também cioso, aliás ciosíssimo de suas funções e responsabilidades, gentilmente bateu a mão nas costas de Monjolo, impulsionada, no ato, pelo peso dos seus cento e dez quilos de músculos.

- Meu senhor, eu entendo...

Ele não precisou terminar o discurso. O “toque” de sua mão nas costas do pobre, empurrando-o “delicadamente” para fora da fila, foi o suficiente para fazer a bexiga se soltar de vez e aquele jato de mijo saiu com uma volúpia, uma voracidade tal que, por questão de absoluta vingança, atingiu a mocinha da portinhola, pelo lado do balcãozinho, e o próprio segurança. Mijou-se todo e aos dois também, porque, diante do descontrole, ele tentou virar-se para a parede e o mijo bateu e voltou, enchendo suas calças, cueca, meias e sapatos daquele banho morninho, aliviante. Visivelmente, Mijolo sentiu-se outro. E atrás dele risadas, gargalhadas, garotas olhando sem olhar, chacotas. Mas ele finalmente saiu da fila, altivo, aliviado, descontraído, leve e... totalmente molhado e fedido.

E lá se foi Mijolo caminhando célere, fedido e vitorioso sob o olhar de espanto e revoltado da mocinha e dos seguranças: mais uma coisa de graça para a sua coleção: mijar! E mijo democrático, com direito a distribuição gratuita aos próximos. Ele sim era caridoso!!

Leo Ricino

Setembro de 2004 – Mexido em 30/6/09

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 08/12/2010
Código do texto: T2660189