Breve aventura de um tímido

Lá estava ela, sentada à frente, vestida casualmente, provocava sem se dar conta disso. As pernas cruzadas em uma sensualidade desproposital, as mãos de unhas bem feitas pousadas uma sobre outra, sobre a perna esquerda. Postura perfeita, cabeça levemente tomada para o lado direito, coberta por cabelos de um falso castanho, mas de comprimento e volume meticulosamente tratados. Um sorriso de Monalisa, um pouco mais sapeca no seu rosto de menina, escapava de seus lábios pintados com um batom cor de chiclete de tutti-frutti. Era esse o gosto que lhe vinha ao paladar, a sensação doce que lhe acometia, sempre que olhava para aquela boca. Se condizia à realidade não sabia, mas sabia que desejava provar. Ah, como desejava. Parado feito estátua grega, com olhar sonhador, fugiam-lhe os passos todos os dias ao chegar atrasado na faculdade, abrir a porta da sala e deparar com aquele quadro, como envolto em brumas. Ele então finalmente pôs-se a mover, até o fundo da classe, cabeça baixa, mãos suando, desejando a invisibilidade. São tímidos os sonhadores que enfrentam a realidade, que olhares alheios perfuram-lhes o peito ao se depararem caídos das nuvens. A timidez é a maldição que enrola a língua, queima as faces, apaga a da mente qualquer palavra e capacidade de articulação. Quando ele, propositalmente por acaso, cruzava o caminho dela e por suposta sorte repentina recebia um sorriso de cumprimento, um trem de palavras passava pela sua cabeça em velocidade de um tiro “aicarambaelaosrriupramimfalocomela?naonaofalosorriuporeducaçãosemintenção” e então balbuciava algo como “otubem?”. Nunca trocaram mais que cumprimentos. Ele a desejava, se iludia, vagueava em devaneios depois das aulas com momentos juntos, juras apaixonadas, passeios à noite, fazer amor. Sentia seu cheiro, experimentava a textura da sua pele em sonhos, a verdadeira cor de seus olhos, como só um amante conhece ao examinar os olhos da amada a milímetros de distância. Ela era o seu graal, sua busca impossível, entorpecente visão.

Mas hoje, tomado de inesperada coragem, era o dia de arriscar. Às favas com a timidez. Fim da aula, início do intervalo, ele puxaria conversa, chamaria pra sair, qualquer coisa, desde que arriscasse. No relógio, ao mesmo tempo em que os ponteiros corriam em maratona predizendo e adiantando o seu fracasso, o tempo se arrastava atrelado à sua ansiedade. Sua perna esquerda já subira e descera milhões de vezes, incessante, incansável. Sua cabeça longe, o olhar nas costas dela, desenho sublime, nuca, coluna, ombros em perfeita simetria.

A sirene interrompe seus pensamentos. Tudo agora acontece em câmera lenta. Ele acompanha seus movimentos, ela sorri para as amigas, faz um comentário qualquer que provoca outros sorrisos. Na verdade tudo são sombras ao redor dela, como se emitisse um brilho que vem de encontro com os olhos e nada mais é visível além do corpo brilhante. Ela descruza as pernas, se levanta, o seu perfil agora em destaque, nariz moldado como por mãos de escultores, olhar doce e provocante, delineado por leve sombra escura nas pálpebras, íris cor de mel. Ela sorria, sorria, e como ele desejava que fosse ele a razão de seus sorrisos. Ele se levanta, para um segundo e firma os joelhos, respira profundamente, foca seu alvo e caminha entre as carteiras. Mais 6 passos. 5...4...3... e de repente tudo escurece. Uma dor na coxa esquerda. Um barulho de madeira conta o piso e papéis a amassar ecoa pela classe. Todos ficam em breve silêncio. Ele sente um tremor pelo corpo, o calor nas bochechas e atrás dos olhos que abre lentamente e, olhando para baixo, vê uma carteira caída e materiais espalhados pelo chão. Ela está na sua frente, olhando para ele com curiosidade e ele, com um sorriso constrangedor, tenta falar “d-de-dscupa”. Era a carteira dela. Eram os materiais dela. Andando rígido não percebera o obstáculo no seu caminho. Rapidamente se abaixa a juntar os materiais e erguer a carteira, achando-se bobo, como um adolescente pueril. Completa a tarefa o rápido possível e se afasta. Ela parece ter dito alguma coisa, mas não entrou em seus ouvidos bloqueados e ele se afastando repetindo “foi mal, foi mal”. Vai ao bebedouro, refresca a garganta, joga água no rosto, senta-se na praça central da faculdade, os rostos que passam por ele todos iguais, todos sem sentido. Ao voltar à sala de aula, vai direto à sua carteira, imaginando as pessoas comentando “como aquele cara era esquisito”. Na verdade ninguém pensa nele, um acontecido em importância, mas qualquer ato que chame brevemente a atenção se torna um espetáculo de vexame imemorável na mente de um tímido. Ele esconde o rosto atrás de um livro. As aulas recomeçam, terminam novamente e ele vai embora, sem olhar para trás, sem se despedir de ninguém. Em casa, sozinho, relembra dezenas de vezes a cena, se autocensurando , tentando de alguma maneira abafar a memória. O sono chega, ele dorme.

Ela chega em casa, senta-se em frente ao computador, inicia um papo com uma amiga pelo MSN: “ai amiga, akele cara q eu sou afim na sala derrubou todo meu material hj...tentei puxar um papo, mas ele foi saindo... quem dera ele me desse bola...”