Olho por língua
-Não adianta! Não me venha com história!
-Meu bem, você está louca. Você é doente. Precisa se tratar.
Ela pegou o prato de comida e foi terminar na sala, em frente a televisão. Ele botou um cigarro na boca, e foi pra fora, levar os ossinhos pro cachorro.
Já era longe o tempo em que mantinham uma conversa saudável. A crise no casamento era comentada na rua toda, até pelo barulho que surtia as desavenças.
-Desgraçado! Traidor! Apóstata!
-Quê?
Não tinha jeito. Era preciso por um basta na situação.
-Queria que você fosse cego.
-Sério?
-Seria perfeito.
O amor é um valor individual, intransferível. Mas quando sentido por duas partes, se torna indefinido. Uma loucura mesmo.
-Está bem.
-O que que está bem?
-Meus olhos. Eu deixo.
-Jura?
Era o desejo da mulher. Um marido cego. Que tivesse registrado na memória somente a imagem da mulher. A imagem dela, sem que lhe fosse necessário vê-la velha e feia algum dia. Mas ele quis uma coisa: em troca por dois olhos seus, pediu a língua da mulher. Assim ainda teria o direito ao seu orgulho. E ninguém lhe diria em que pensar.