Ela, a que não era ela...
No princípio, achava normal. Era a dor da perda que produzia imagens em seu cérebro. Ela os via, os seus mortos. Nunca pensou que fossem espectros. Estes são diferentes, há como uma aura de luz em torno deles. Os que via, eram os seus mortos, mas os seus mortos, vivos em outros corpos. A imagem. Estavam por toda parte. Ela os viu recostados em uma mureta. Na fila dos bancos. Simplesmente atravessando a rua. Passando de carro pela rua,no banco do carona. Todos os que lhe ocuparam o coração em vida, teimavam em não deixá-lo na morte e estavam sempre se insinuando em seu caminho, para não deixá-la esquecer. Não eram só os parentes. Amigos, com todos acontecia a mesma coisa. A visibilidade aumentava nas datas que lhes eram mais caras. Aniversários de nascimento e aniversários de morte. Comemorações familiares ou institucionais. Decisões de campeonatos de futebol.Festividades. Nunca se preocupara com isso nem tentara explicar, porque era explicável. Achava reconfortante. A visão do ser querido sempre enchia de ternura o seu coração, trazia um brilho aos olhos e um pequeno sorriso nos lábios fechados. Era bom. Gostava dessas visões que a ajudavam a diminuir a dor que sentia quando mais um deles partia. E era assim: a visão dos que partiram primeiro iam sendo aos poucos substituída pela visão dos que mal acabavam de partir.
Um dia as coisas começaram a se complicar embora só tivesse dado conta realmente tempos depois. Quando já era tarde demais.
Um dia ela começou a se ver. Foi aos poucos que isso aconteceu. Primeiro eram fotos em jornais e revistas, alguém na multidão. Nem se preocupou, apenas pensou: com tanta gente no mundo sempre tem alguém parecido com a gente. Depois, foi na televisão e no cinema. Ela sempre estava lá, fazendo uma pontinha, assistindo um programa de auditório. Impossível descobrir quem era a tal, sem nenhuma citação. Aparecia e desaparecia. Chegou a tentar descobrir quem era aquela que era ela, escrevendo para as emissoras de TV, que nem ao menos respondiam, não lhe davam atenção. O pior mesmo foi quando começou a se ver na rua. Estava em uma loja, um cinema, uma agência bancária quando se via ao longe. No principio ficava parada, olhos fixos e de repente, ela não estava mais lá. Depois começou a tentar interpelar aquela que era ela e não era, mas quando se aproximava por um mistério qualquer ficava sozinha, sem o seu duplo. Uma vez correndo atrás de um desses duplos, que agora se multiplicavam assustadoramente durante o dia, quase foi atropelada por um taxi e ainda ouviu um xingamento.
Mas a coisa não parou por aí. De repente começou a vê-la com seu marido. Ela que não era ela entrava no edifício onde ele tinha escritório. Ela que era ela ia atrás, mas nada. Passava na rua dentro do carro do marido, sentada na frente com ele e quando o interpelava ouvia: você enlouqueceu, não tinha ninguém comigo. E se fosse arrumar outra, ia arrumar uma igualzinha a você? Só se fosse doido! Não se convencia, mas fingia. Mas ficava de olho, sempre atenta. Mas nem era preciso: ela que não era ela não aparecia quando ela que era ela estava atenta. Só quando se distraia. Era só começar a ter um pensamento normal, esquecer dessas doidices, como dizia o marido, ameaçando interná-la, que a outra que não era a outra era ela, aparecia.
Uma manhã bem cedo, após uma noite insone, saiu para caminhar. Quando estava voltando viu a outra entrando em sua casa. Dessa vez eu te pego, pensou. E apertando o passo logo chegou em casa. Foi direto para a cozinha, que estava vazia. Bebeu um copo de água para se acalmar. Viu a faca em cima da bancada da pia. Pegou na faca, para me defender, pensou. Andou pela casa toda procurando a outra que também era ela, mas não era porque era a outra. Deixou o quarto por último. Não queria encontrá-la lá, mas foi lá que a encontrou: deitada na cama, ao lado do seu marido. Dormiam tranquilamente, os dois, ele, de bruços, com um braço passado sobre o corpo dela, o outro estendido para fora da cama. A descarada estava lá, na sua cama, com a sua roupa, dormindo ao lado do seu marido. Não pensou duas vezes: desferiu-lhe uma punhalada, com toda força, bem perto do coração.
Quando voltou a si, não teve nenhuma dúvida. Tinha matado a outra, ela que não era ela e agora ficaria livre do pesadelo. Só não conseguia saber onde estava. O seu quarto não tinha grades na janela. Quando tentou levantar-se, não conseguiu... sentiu uma dor violenta no lado esquerdo do peito. Parou um pouco para respirar. Foi só então que percebeu que estava toda amarrada em uma cama de hospital...
No princípio, achava normal. Era a dor da perda que produzia imagens em seu cérebro. Ela os via, os seus mortos. Nunca pensou que fossem espectros. Estes são diferentes, há como uma aura de luz em torno deles. Os que via, eram os seus mortos, mas os seus mortos, vivos em outros corpos. A imagem. Estavam por toda parte. Ela os viu recostados em uma mureta. Na fila dos bancos. Simplesmente atravessando a rua. Passando de carro pela rua,no banco do carona. Todos os que lhe ocuparam o coração em vida, teimavam em não deixá-lo na morte e estavam sempre se insinuando em seu caminho, para não deixá-la esquecer. Não eram só os parentes. Amigos, com todos acontecia a mesma coisa. A visibilidade aumentava nas datas que lhes eram mais caras. Aniversários de nascimento e aniversários de morte. Comemorações familiares ou institucionais. Decisões de campeonatos de futebol.Festividades. Nunca se preocupara com isso nem tentara explicar, porque era explicável. Achava reconfortante. A visão do ser querido sempre enchia de ternura o seu coração, trazia um brilho aos olhos e um pequeno sorriso nos lábios fechados. Era bom. Gostava dessas visões que a ajudavam a diminuir a dor que sentia quando mais um deles partia. E era assim: a visão dos que partiram primeiro iam sendo aos poucos substituída pela visão dos que mal acabavam de partir.
Um dia as coisas começaram a se complicar embora só tivesse dado conta realmente tempos depois. Quando já era tarde demais.
Um dia ela começou a se ver. Foi aos poucos que isso aconteceu. Primeiro eram fotos em jornais e revistas, alguém na multidão. Nem se preocupou, apenas pensou: com tanta gente no mundo sempre tem alguém parecido com a gente. Depois, foi na televisão e no cinema. Ela sempre estava lá, fazendo uma pontinha, assistindo um programa de auditório. Impossível descobrir quem era a tal, sem nenhuma citação. Aparecia e desaparecia. Chegou a tentar descobrir quem era aquela que era ela, escrevendo para as emissoras de TV, que nem ao menos respondiam, não lhe davam atenção. O pior mesmo foi quando começou a se ver na rua. Estava em uma loja, um cinema, uma agência bancária quando se via ao longe. No principio ficava parada, olhos fixos e de repente, ela não estava mais lá. Depois começou a tentar interpelar aquela que era ela e não era, mas quando se aproximava por um mistério qualquer ficava sozinha, sem o seu duplo. Uma vez correndo atrás de um desses duplos, que agora se multiplicavam assustadoramente durante o dia, quase foi atropelada por um taxi e ainda ouviu um xingamento.
Mas a coisa não parou por aí. De repente começou a vê-la com seu marido. Ela que não era ela entrava no edifício onde ele tinha escritório. Ela que era ela ia atrás, mas nada. Passava na rua dentro do carro do marido, sentada na frente com ele e quando o interpelava ouvia: você enlouqueceu, não tinha ninguém comigo. E se fosse arrumar outra, ia arrumar uma igualzinha a você? Só se fosse doido! Não se convencia, mas fingia. Mas ficava de olho, sempre atenta. Mas nem era preciso: ela que não era ela não aparecia quando ela que era ela estava atenta. Só quando se distraia. Era só começar a ter um pensamento normal, esquecer dessas doidices, como dizia o marido, ameaçando interná-la, que a outra que não era a outra era ela, aparecia.
Uma manhã bem cedo, após uma noite insone, saiu para caminhar. Quando estava voltando viu a outra entrando em sua casa. Dessa vez eu te pego, pensou. E apertando o passo logo chegou em casa. Foi direto para a cozinha, que estava vazia. Bebeu um copo de água para se acalmar. Viu a faca em cima da bancada da pia. Pegou na faca, para me defender, pensou. Andou pela casa toda procurando a outra que também era ela, mas não era porque era a outra. Deixou o quarto por último. Não queria encontrá-la lá, mas foi lá que a encontrou: deitada na cama, ao lado do seu marido. Dormiam tranquilamente, os dois, ele, de bruços, com um braço passado sobre o corpo dela, o outro estendido para fora da cama. A descarada estava lá, na sua cama, com a sua roupa, dormindo ao lado do seu marido. Não pensou duas vezes: desferiu-lhe uma punhalada, com toda força, bem perto do coração.
Quando voltou a si, não teve nenhuma dúvida. Tinha matado a outra, ela que não era ela e agora ficaria livre do pesadelo. Só não conseguia saber onde estava. O seu quarto não tinha grades na janela. Quando tentou levantar-se, não conseguiu... sentiu uma dor violenta no lado esquerdo do peito. Parou um pouco para respirar. Foi só então que percebeu que estava toda amarrada em uma cama de hospital...