Volta ao Lar
Ela se percebeu ali, parada, no fim da pequena rua, apenas um quarteirão. Estava de frente para a casa da avó, mas não olhava para ela. Via, a sua esquerda, a linha do trem, vazia. A sua direita, a pequena Praça de formato esquisito, o cruzeiro de madeira ao centro. Virou-se um pouco, colocando-se de costas para os trilhos e agora, de frente para a Praça, olhou primeiro a rua, complemento da pequena estrada que ligava sua cidade a A. Nenhum sinal de que um carro houvesse passado por ali assim como não havia nenhum sinal, nenhuma lembrança de que um trem tivesse percorrido aqueles trilhos em direção a qualquer lugar. Como tinha ido parar ali? Não tinha nenhuma lembrança de haver viajado, a memória não ia muito longe, lembrava-se apenas de um sono estranho que a fizera ir para a cama sem ao menos fechar o computador. Devia ser um sonho.
Olhou então para sua casa. Era estranho chamá-la de sua casa, ela mesma fora encarregada de vendê-la há muitos anos atrás. Muitos... Mas o engraçado é que a casa estava como era antes e no entanto ela já voltara ali outras vezes encontrando a casa completamente modificada. Para pior, é claro. Estava toda fechada, mas de duas chaminés podia observar a fumaça subindo. Uma bem fraquinha, era a da cozinha. A outra, a da Padaria. No entanto a fumaça logo desaparecia sendo engolida por uma fumaça maior, a geada. Fazia tempo que não via uma geada, que não colocava uma bacia com água no quintal para que amanhecesse endurecida, gelo a ser quebrado como uma casca de ovo. O seu olhar se voltou para outras casas, a esquerda a do Tio Zé, a frente a da Tia América. Voltou-se para olhar a casa da avó. Todas elas e as outras casas também soltavam a fumaça por sua chaminé. Mais uma vez ela pensou na esquisitice da situação, ninguém mais usava fogão a linha. Todo mundo que ela conhecia usava fogão a gás, forno micro-ondas. Sim, devia ser um sonho.
Resolveu ir até a casa. Se era um sonho, queria aproveitar o sonho. E estava muito frio na rua.Olhou as suas roupas e percebeu que estava de pijama, como se tivesse acabado de levantar. Nos pés, as havaianas cor de rosa que V. lhe dera. Tinha ganhado em um casamento e não lhe servira, então lhe dera. Moda mais esquisita essa, distribuir sandálias nas festas. Se bem que, pensando bem, esquisito era ir para uma festa onde o agito era total calçando aquelas sapatos que acabam com os pés até com você assentado. A distribuição de sandálias não era tão esquisita assim, pensou, voltando atrás no próprio pensamento. Esquisito era ela estar ali calçando sandálias havaianas e vestindo um pijama de malha comprado em Borda. Borda da Mata? Borda do Campo? Nunca se lembrava do nome da cidade, tinha sempre que perguntar. Borda o que mesmo? Tinha ido lá há poucos dias, talvez fosse isso que estava causando esse sonho esquisito. Resolveu parar de pensar e entrar na casa.Tinha já se esquecido como era a casa e agora no sonho talvez fosse possível lembrar. Porque devia ser um sonho, se não fosse o que seria então?
Aproximou-se do alpendre. Por um segundo avistou sombras assentadas no banco de madeira e pensou que fosse o tio e a namorada, era ali que eles se encontravam para namorar todas as noites, mas não podia ser, a noite estava acabando e, nem em sonhos eles ficariam ali até àquela hora, o dia já querendo começar, não ia pegar bem. Além disso, os dois haviam se casado com pessoas diferentes e o tio já havia morrido. Não, eram apenas sombras, mas sentiu um calafrio quando passou e percebeu que era ele sim, assentado ali sozinho, de braços cruzados. Então apressou o passo e se apoiou na mureta do alpendre em L, de costas para a Praça, para se recobrar. Um sorriso veio aos seus lábios quando viu o bando de andorinhas de louça na parede, andorinhas azuis, que a mãe ali colocara. E as folhas de cimento que a mãe modelara, sempre encontrando um jeito de tornar a casa mais alegre e bonita, diferente das outras casas. Pegou na maçaneta da porta e embora a impressão que teve de não ter conseguido alcançá-la ela se movimentou mansamente e a porta abriu permitindo que ela entrasse. Não estava fechada a chave. Entrou na pequena sala quadrada, a sala de visitas. O sofá estofado de rosas, as duas poltronas, as banquetas, a mesinha de centro, os quadros na parede. Era uma sala com quatro portas: uma para o alpendre, uma para a sala de jantar e duas para dois quartos. Voltaria depois para ver os quartos, o quarto de visitas onde sempre dormia nas férias, com a prima A., que vinha de Lavras. O outro quarto, mínimo, com duas camas, era o quarto dos meninos, apenas dois no tempo daquele sonho, o caçula ainda não havia nascido. Achou estranho as camas estarem desarrumadas, quem teria dormido ali? Cada vez mais a perturbava a esquisitice de sonho, que entre outras coisas estava seguindo uma ordem temporal e espacial, mas quando essa perturbação teimava em vir à tona, ela a afastava e dizia a si mesma: mas o que é que você queria isso deve ser um sonho e sonho não seguem ordem nenhuma podendo inclusive seguir qualquer ordem.
Entrou na sala de jantas, também quadrada e muito pequena e notou que as portas dos dois quartos também estavam fechadas, a do quarto dos pais e a das meninas menores. Passou então para o corredor e ali estava o seu quarto com as duas camas: a janela estava aberta e ela percebeu que o dia logo estaria bem claro. Sentiu uma ponta de nostalgia, tudo ali estava como ela deixara, mais do que isso, tinha cheiro de arrumação, cheiro de limpeza, fazendo-a lembrar-se de quando voltava do Internato para casa, nas férias e do quarto preparado pela mãe para recebê-la. Ali no corredor, estava o lavatório, com o armarinho com espelho e ela não resistiu e se olhou. Sentiu-se bem ao encontrar seu rosto no espelho, um rosto tranquilo e alegre e colocou um sorriso nele: o pai estava na cozinha, como sempre, todas as manhãs, fazendo o café e preparando as mamadeiras. Ela iria aproveitar bem esta oportunidade que o sonho lhe dava, rever o pai, após tantos anos. Tentou apoiar-se com a mão esquerda no lavatório de louça e nem deu atenção ao fato de não PR conseguiu alcançá-lo porque as portas que davam para a Padaria e para a sala onde funcionava a agência dos Correios ainda estavam fechadas e então se dirigiu a cozinha com toda a sua coragem. Que sonho bom que eu estou tendo, pensou, porque devia ser um sonho, devia.
O pai estava de costas. Ela o viu, tendo parado um momento para absorver tudo ali. O fogão de lenha, a mesa, os bancos, a pia, a porta da despensa, que um dia fora banheiro e onde ela leu, aos oito anos, seu primeiro romance. vício adquirido para sempre.Então ela olhou para o lado e também os viu, os dois irmãos, o primeiro e o segundo, assentados no banco, esperando o café que o pai fazia. Foi o segundo que a notou primeiro e então se levantando e caminhando em sua direção, disse: Pai ela chegou! E os três com sorrisos nos lábios foram até ela para abraçá-la. Foi aí que percebeu, quando a abraçaram e seus corpos se fundiram como se fossem espectros que não era sonho. Mas devia, pensou ela. Devia.
Ela se percebeu ali, parada, no fim da pequena rua, apenas um quarteirão. Estava de frente para a casa da avó, mas não olhava para ela. Via, a sua esquerda, a linha do trem, vazia. A sua direita, a pequena Praça de formato esquisito, o cruzeiro de madeira ao centro. Virou-se um pouco, colocando-se de costas para os trilhos e agora, de frente para a Praça, olhou primeiro a rua, complemento da pequena estrada que ligava sua cidade a A. Nenhum sinal de que um carro houvesse passado por ali assim como não havia nenhum sinal, nenhuma lembrança de que um trem tivesse percorrido aqueles trilhos em direção a qualquer lugar. Como tinha ido parar ali? Não tinha nenhuma lembrança de haver viajado, a memória não ia muito longe, lembrava-se apenas de um sono estranho que a fizera ir para a cama sem ao menos fechar o computador. Devia ser um sonho.
Olhou então para sua casa. Era estranho chamá-la de sua casa, ela mesma fora encarregada de vendê-la há muitos anos atrás. Muitos... Mas o engraçado é que a casa estava como era antes e no entanto ela já voltara ali outras vezes encontrando a casa completamente modificada. Para pior, é claro. Estava toda fechada, mas de duas chaminés podia observar a fumaça subindo. Uma bem fraquinha, era a da cozinha. A outra, a da Padaria. No entanto a fumaça logo desaparecia sendo engolida por uma fumaça maior, a geada. Fazia tempo que não via uma geada, que não colocava uma bacia com água no quintal para que amanhecesse endurecida, gelo a ser quebrado como uma casca de ovo. O seu olhar se voltou para outras casas, a esquerda a do Tio Zé, a frente a da Tia América. Voltou-se para olhar a casa da avó. Todas elas e as outras casas também soltavam a fumaça por sua chaminé. Mais uma vez ela pensou na esquisitice da situação, ninguém mais usava fogão a linha. Todo mundo que ela conhecia usava fogão a gás, forno micro-ondas. Sim, devia ser um sonho.
Resolveu ir até a casa. Se era um sonho, queria aproveitar o sonho. E estava muito frio na rua.Olhou as suas roupas e percebeu que estava de pijama, como se tivesse acabado de levantar. Nos pés, as havaianas cor de rosa que V. lhe dera. Tinha ganhado em um casamento e não lhe servira, então lhe dera. Moda mais esquisita essa, distribuir sandálias nas festas. Se bem que, pensando bem, esquisito era ir para uma festa onde o agito era total calçando aquelas sapatos que acabam com os pés até com você assentado. A distribuição de sandálias não era tão esquisita assim, pensou, voltando atrás no próprio pensamento. Esquisito era ela estar ali calçando sandálias havaianas e vestindo um pijama de malha comprado em Borda. Borda da Mata? Borda do Campo? Nunca se lembrava do nome da cidade, tinha sempre que perguntar. Borda o que mesmo? Tinha ido lá há poucos dias, talvez fosse isso que estava causando esse sonho esquisito. Resolveu parar de pensar e entrar na casa.Tinha já se esquecido como era a casa e agora no sonho talvez fosse possível lembrar. Porque devia ser um sonho, se não fosse o que seria então?
Aproximou-se do alpendre. Por um segundo avistou sombras assentadas no banco de madeira e pensou que fosse o tio e a namorada, era ali que eles se encontravam para namorar todas as noites, mas não podia ser, a noite estava acabando e, nem em sonhos eles ficariam ali até àquela hora, o dia já querendo começar, não ia pegar bem. Além disso, os dois haviam se casado com pessoas diferentes e o tio já havia morrido. Não, eram apenas sombras, mas sentiu um calafrio quando passou e percebeu que era ele sim, assentado ali sozinho, de braços cruzados. Então apressou o passo e se apoiou na mureta do alpendre em L, de costas para a Praça, para se recobrar. Um sorriso veio aos seus lábios quando viu o bando de andorinhas de louça na parede, andorinhas azuis, que a mãe ali colocara. E as folhas de cimento que a mãe modelara, sempre encontrando um jeito de tornar a casa mais alegre e bonita, diferente das outras casas. Pegou na maçaneta da porta e embora a impressão que teve de não ter conseguido alcançá-la ela se movimentou mansamente e a porta abriu permitindo que ela entrasse. Não estava fechada a chave. Entrou na pequena sala quadrada, a sala de visitas. O sofá estofado de rosas, as duas poltronas, as banquetas, a mesinha de centro, os quadros na parede. Era uma sala com quatro portas: uma para o alpendre, uma para a sala de jantar e duas para dois quartos. Voltaria depois para ver os quartos, o quarto de visitas onde sempre dormia nas férias, com a prima A., que vinha de Lavras. O outro quarto, mínimo, com duas camas, era o quarto dos meninos, apenas dois no tempo daquele sonho, o caçula ainda não havia nascido. Achou estranho as camas estarem desarrumadas, quem teria dormido ali? Cada vez mais a perturbava a esquisitice de sonho, que entre outras coisas estava seguindo uma ordem temporal e espacial, mas quando essa perturbação teimava em vir à tona, ela a afastava e dizia a si mesma: mas o que é que você queria isso deve ser um sonho e sonho não seguem ordem nenhuma podendo inclusive seguir qualquer ordem.
Entrou na sala de jantas, também quadrada e muito pequena e notou que as portas dos dois quartos também estavam fechadas, a do quarto dos pais e a das meninas menores. Passou então para o corredor e ali estava o seu quarto com as duas camas: a janela estava aberta e ela percebeu que o dia logo estaria bem claro. Sentiu uma ponta de nostalgia, tudo ali estava como ela deixara, mais do que isso, tinha cheiro de arrumação, cheiro de limpeza, fazendo-a lembrar-se de quando voltava do Internato para casa, nas férias e do quarto preparado pela mãe para recebê-la. Ali no corredor, estava o lavatório, com o armarinho com espelho e ela não resistiu e se olhou. Sentiu-se bem ao encontrar seu rosto no espelho, um rosto tranquilo e alegre e colocou um sorriso nele: o pai estava na cozinha, como sempre, todas as manhãs, fazendo o café e preparando as mamadeiras. Ela iria aproveitar bem esta oportunidade que o sonho lhe dava, rever o pai, após tantos anos. Tentou apoiar-se com a mão esquerda no lavatório de louça e nem deu atenção ao fato de não PR conseguiu alcançá-lo porque as portas que davam para a Padaria e para a sala onde funcionava a agência dos Correios ainda estavam fechadas e então se dirigiu a cozinha com toda a sua coragem. Que sonho bom que eu estou tendo, pensou, porque devia ser um sonho, devia.
O pai estava de costas. Ela o viu, tendo parado um momento para absorver tudo ali. O fogão de lenha, a mesa, os bancos, a pia, a porta da despensa, que um dia fora banheiro e onde ela leu, aos oito anos, seu primeiro romance. vício adquirido para sempre.Então ela olhou para o lado e também os viu, os dois irmãos, o primeiro e o segundo, assentados no banco, esperando o café que o pai fazia. Foi o segundo que a notou primeiro e então se levantando e caminhando em sua direção, disse: Pai ela chegou! E os três com sorrisos nos lábios foram até ela para abraçá-la. Foi aí que percebeu, quando a abraçaram e seus corpos se fundiram como se fossem espectros que não era sonho. Mas devia, pensou ela. Devia.