Os Presentes

- Teremos que mudar mesmo? – Perguntou Simone choramingando.

- É preciso, querida. – Respondi fazendo cafuné na sua cabeça.

Ela levantou. Estava deitada com a cabeça nas minhas pernas.

Encarou-me. Mostrando seus olhos castanhos iluminados.

- Será preciso? Já me acostumei com o hotel. Há quanto tempo estamos aqui?

- Um ano. Você sabe que não podemos permanecer tanto tempo no mesmo lugar.

- Eu sei. Mas estou cansada.

- Falou que ai até o fim.

- Sim. Juramos. Pensa, não deseja um lugar fixo, não se cansa de trocar de lugar?

- Estive pensando no sul.

- Boa escolha.

Simone foi à cozinha, pegou a garrafa térmica e colocou café na xícara. Ela gosta de café, toma muito.

Voltou à sala com a xícara. Sentou no sofá no meio de duas caixas de papelão. Remexeu numa delas.

- Lembra de como conseguimos esta estatua?

Ela mostrou a estatua do deus egípcio Hôrus.

- De um milionário egípcio.

- Adorava aquele lugar. – Disse bebendo o café.

- As pirâmides. Vendemos as fotos que tiramos, lembra?

- Sim, para um historiador. Mentimos um pouco.

Rio.

- Mas valeu.

Ela riu.

- E como. Com o dinheiro voltamos para o Brasil.

Ela botou a estatua de volta e retirou outro objeto.

- E este, recorda?

Era um mapa enrolado num cordão.

- Foi de um dinamarquês, não?

- Acreditamos que o mapa levaria há um tesouro.

- Era mentira. Perda de tempo. Pelo menos é um presente.

- Sem duvida.

Simone voltou à cozinha. Colocou mais café na xícara.

Eu estava de pé segurando um quadro.

- E este querida lembra de como conseguimos?

- Raríssimo não?

O quadro pra uma pintura de Portinari.

- Ganhamos de uma fazendeira do Mato Grosso. – Respondeu Simone.

- Esqueci como a conhecemos.

- Nem eu. Ela era tão fina.

- Sim, finíssima. Não recusou dar o quadro.

Começou a remexer na outra caixa. Retirou um cachimbo prateado.

- Foi de um barão de sei lá das quantas, não? – Perguntei.

- Descendente. Parente distante. Era britânico. Conhecemos em Copacabana. – Disse Simone tomando o café.

- Ah, sim! Adorava ouvir Mozart.

- Devemos sair daqui?

- Não tem jeito Simone.

- Cansa arrumar os objetos dentro das caixas. Até perdi a conta de quantos presentes temos. Já passamos de mil?

- Estamos em mil quatrocentos e noventa e nove. – Respondi.

- Ganhamos de maneira simples.

- De boa vontade. – Disse.

Simone voltou à cozinha.

- Ih, acabou o café. O ultimo desse hotel.

- Você ligou para a empresa de mudança? – Perguntei.

- Liguei. Tudo certo?

- Sim. Vamos para o sul, eu disse.

- Vai demorar pra empresa chegar. Pena que acabou o café.

Tomou o ultimo gole de café na xícara. Jogou na caixa.

- Nós devíamos vender tudo. – Ela comentou.

- Tá maluca? De maneira nenhuma! Amo esses presentes. Olhe o quadro do Hieronymus Bosch. Dado por um norueguês, e essa porcelana japonesa, lembra? Foi de uma gueixa.

- Japão, lugar encantador.

- E este machado Inca?

- Presente de um americano. Ele era de Massachusets, não?

- Era. E você querendo desfazer de tudo.

- Loucura.

- É a nossa sina. Nós fizemos um pacto, se possível morreremos por ele.

- Sei disso. Até o fim.

Abracei-a, beijei sua testa.

Entrei no quarto. Retirei uma caixa de madeira. Abri. Peguei uma pistola com silenciador colocando dentro da calça.

Na sala Simone estava selando as caixas.

- Vou sair.

- Onde?

- Pagar a dona do hotel.

- Manda um abraço pra ela.

Saio, a porta da dona do hotel ficava no mesmo corredor que o meu. Aperto a campainha.

Alguns segundos ela abre a porta. Está de lenço na cabeça.

- Pois não?

- Bom dia dona Jurema. Vim acertar as contas.

- Vai deixar o hotel?

- Simone e eu decidimos mudar para o sul.

- Sul. Agradável escolha. Entre. Não gosto de falar na porta, entre, por favor.Eu toquei no cabo da pistola.

Simone deve ter lembrado que possuímos mil quatrocentos e noventa e nove presentes. O que representa uma peça para completar mil e quinhentos.

Ela vai correr, abrirá a porta na tentativa de me conter.

Será tarde demais.

(Rod.Arcadia)

Rodrigo Arcadia
Enviado por Rodrigo Arcadia em 17/06/2010
Código do texto: T2325148
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