O VELHO DA COLINA
Acordei com chuva na cara, minhas roupas molhando, a roupa de cama encharcada. Olhei para cima, metade do telhado do barraco havia sumido. Era muita água. Tratei de levantar-me e meus pés afundaram na água que chegava quase aos joelhos. Não havia luz e achei a janela do quarto guiado pelos relâmpagos que pareciam metralhadoras cuspindo fogo. A casa do visinho passou por mim descendo morro a baixo.
Olhei para a sala, os móveis recém comprados no brick da esquina estavam indo embora pelo que sobrou da parede da frente. Descia muita lama e muita água e chovia cada vez mais forte. Tratei de sair dali. Meus pés afundavam na lama e tinha dificuldade para me mover além de fazer muita força para suportar a pressão da água. Algo bateu nas minhas costas. O choro de um bebê me revelou um berço com seu pequeno ocupante apavorado quase se afogando em tanta água. Fiz um esforço sobre-humano para recolhê-lo e tentar sair dali. Fui arrastado pela força da lama com a figurinha agarrada a mim. Algo se chocou contra minha perna, a dor foi muito forte e logo a superfície da água revelava manchas vermelhas. Meu sangue.
De repente meus pés encontraram uma parede. Era a casa de baixo que estava indo e agora me levava de contra-peso. Ouvia sirenes, gemidos e gritos de pavor, parecia que o mundo estava se derretendo. Finalmente a descida parou e eu mais aquela figurinha estávamos cobertos de lama por todos os lados. Uma mão amiga me ajudou e uma velinha ainda chorando, tomou o bebê em seus braços e o confortava. Lembrei-me que nem tivera tempo de perceber que Gilda não estava comigo. Porque tem que ser assim? Levamos anos para construir alguma coisa e em segundos, perdemos tudo, inclusive as pessoas que amamos. Ser pobre é isso! Desamparo e desesperança. Eu estava desempregado. Quase deixei o desespero tomar conta, mas eu tinha 26 anos e muita disposição para trabalhar. Ao final do dia depois de muita luta ajudando na escavação e remoção dos escombros contabilizávamos 8 mortes. Gilda não estava entre eles. Voltei a cavar desesperadamente e tentava aguçar os ouvidos na esperança de um gemido ou de algum sinal. Nada acontecia. Gilda estava desaparecida e ao final do quarto dia de procura por mais algum sobrevivente, as esperanças acabaram. Eu comia alguma coisa que o pessoal da defesa civil conseguia e dormia como podia algumas horas por noite.
Novas chuvas torrenciais acabaram com qualquer expectativa que ainda pudéssemos ter. Eu havia perdido tudo e nem sinal de Gilda. Mas a vida continua. Era preciso retomar a busca por trabalho e recolher os poucos cacos que haviam sobrado. Não havia muito a recolher. Nestas horas sempre aparece alguém para ajudar. Perto dali havia uma oficina mecânica e eu conhecia o proprietário de vista. Já havia trabalhado como mecânico entre outras coisas. Ernani me colocou a disposição um espaço em sua oficina onde eu poderia colocar as minhas coisas e me ofereceu um emprego. O salário era pouco, mas dava. Agora eu não tinha mais contas de água e luz para pagar. Agarrei a oportunidade com garra e força de vontade. Trabalhava até tarde mesmo depois que a oficina estava fechada. Com meu primeiro salário comprei um livro, um tratado de mecânica automotiva e ficava até altas horas estudando.
Eu gostava da profissão e caprichava no serviço. Ernani mostrava-se satisfeito porque o serviço aumentara e os clientes elogiavam o trabalho. Várias vezes eu o surpreendia com o serviço pronto bem antes do prazo. Resolvi então estudar. Eu havia completado o primeiro grau e arranjei uma escola noturna. Debruçava-me sobre os livros até a madrugada. De Gilda não sabia, não havíamos encontrado seu corpo e seu destino era um mistério.
Edinara era uma mulata de 22 anos que vinha vender pastéis e sanduíches que fazia para sustentar o filho de 2 anos. Era separada do marido que estava cumprindo pena por assalto e roubo. Cresceu uma afinidade entre nós e começamos a namorar. Resolvemos mais tarde morar juntos e alugamos duas peças de um amigo de Ernani. Assim íamos levando a vida. Ela me ajudava nos estudos e eu trabalhava e consegui finalmente entrar para a faculdade. Não posso dizer que a amava, na verdade eu não conseguia esquecer Gilda, mas ela era alegre, divertida e honesta e isso me fazia de certa forma feliz. A oficina crescia e eu havia convencido Ernani a comprar equipamentos mais modernos que facilitavam muito o trabalho. Finalmente chegou o grande dia. Eu recebia o diploma de engenheiro mecânico e Ernani me propôs sociedade na oficina. Finalmente a minha vida havia mudado. Agora morávamos em um apartamento confortável e eu pela primeira vez tinha um carro. Então em uma manhã em que fazia compras em um shoping eu a vi. Tinha que ser Gilda, não poderia haver duas pessoas tão parecidas. Estava bem vestida e olhava uma vitrine de moda feminina, meu coração disparou e eu a chamei. Mas ela virou o rosto depressa e saiu com passo apressado. Eu a segui discretamente e ela entrou em um carro e saiu apressadamente olhando para os lados como a tentar ver se eu a havia seguido. Fiquei ali parado tentando entender alguma coisa. Se era Gilda, como poderia ter saído daquele local sem que eu visse? Ou teria saído antes? Naquela noite eu estava muito cansado, havia rodado o dia inteiro tentando uma vaga em algum emprego qualquer e havia deitado sedo. Gilda assistia televisão como sempre e eu pegara no sono rapidamente.
Voltei para casa e contei a Edinara o que havia acontecido.
– Cara! Ta me parecendo que ela se mandou com alguém antes do desabamento.
Na verdade eu já havia pensado nisso. Será que estava sendo traído e não sabia? Estávamos casados há dois anos e eu não tinha motivos sequer para imaginar uma coisa dessas, mas as aparências enganam. No mundo de hoje, nunca podemos ter certeza de nada. Eu corria o dia inteiro atrás de trabalho e vez por outra pegava um biscate para defender uns trocos. Nunca suspeitei de nada. Passou-se mais algum tempo e eu não havia mais visto Gilda. Então uma bela tarde eu estava conversando com Ernani no pátio de estacionamento da oficina quando um táxi parou e Gilda desceu carregada de malas. Ao aproximar-me percebi que alguma coisa havia mudado, Gilda estava cabisbaixa e com semblante cansado com sinais de que havia chorado muito. Antes que eu pudesse falar algo ela se aproximou e me beijou. Neste momento eu senti que algo havia mudado em mim mesmo. Senti seu beijo frio e distante como nunca havia sentido. Meu pensamento nesse momento voltou-se para Edinara, seu doce sorriso e seus beijos ardentes e apaixonados.
– Preciso de você! Você precisa me perdoar.
– Agora você precisa de mim? Sua fonte secou? O operário pobre que dava duro para tentar lhe dar uma vida confortável, foi abandonado numa noite em que perdeu tudo e você não voltou ao menos para dizer que o pobretão já era e que agora você tinha uma vida de madame. O que houve? O ricaço cansou-se de você ou você o traiu também?
– Pare com ironias, eu sei, eu errei. Mas estou aqui pedindo perdão!
– Agora é tarde, minha vida mudou, tenho uma família de verdade. Vou falar com o Ernani e ver o que ele pode fazer por você. O que houve?
– Ele me enganou! Tinha dinheiro, mas era um traficante e eu não sabia, tinha outras mulheres e comandava uma quadrilha, Foi preso com 50 kg de coca. Eu fiquei sem nada.
Dei-lhe algum dinheiro e pedi ao Ernani que fizesse algo por ela. Preparava-me para encerrar o expediente e guardava alguns papeis quando Ernani entrou na sala. Seu semblante patético me fitando em silêncio anunciava que algo muito grave havia ocorrido.
– Fale homem, o que houve?
– Edinara! Ela sofreu um acidente, sinto muito, está na UTI do pronto socorro. E o pior, o filho dela morreu! A notícia caiu como uma bomba me fazendo perceber que minha vida estava novamente destroçada. Corri para o pronto socorro, mas cheguei tarde. Edinara estava morta. Eu me sentia como um autômato, sem vontade própria, não conseguia me concentrar em nada. Eu percebia as pessoas a minha volta, como se fossem borrões. Minha vida não havia sido fácil até ali e de repente a fatalidade me tirava de novo tudo o que eu amava.
Em 3 dias após o funeral, bebi 4 garrafas de uísque. Não fui trabalhar e não tinha vontade de fazer nada. Durante este tempo, meu pensamento esteve o tempo todo envolvido com a análise das coisas que me haviam acontecido, parece que algumas pessoas nascem predestinadas a não conseguir um mínimo de felicidade. Minha vida estava acabando e resolvi abandonar tudo. Retirei algumas economias do banco, joguei o celular na parede, desliguei tudo e deixei a porta aberta. Comprei uma passagem de avião para o sul. Inicialmente iria para Porto Alegre e de lá para o interior. Iria localizar um canto bem retirado onde pudesse sobreviver. Deixei um recado para o Ernani depositar meus rendimentos na conta bancária e não fui nem me despedir.
O avião decolou e pela janela eu lancei meu último olhar para os altos edifícios e o aglomerado de cimento e aço em que se transformou a cidade. Pedi à aero moça um uísque duplo. Eu queria dormir e talvez o álcool ajudasse. Minha vizinha ao lado pediu um Campari com gelo e só então percebi que havia alguém ao meu lado. Uma bela mulher. Dona de uma beleza sofisticada vestida como uma executiva provavelmente de uma grande empresa. Mas eu estava decidido a não me envolver mais com mulher nenhuma. Desde os tempos de escola que eu perdia as namoradas por razões diversas.
– Puxa! Você parece bastante abatido. A voz firme e ainda assim doce, soou-me como algo estranho. Não estava acostumado a ser abordado desse modo.
– Como disse? Perguntei.
– Desculpe, meu nome é Adriana e achei você com um ar muito abatido.
– Desculpe moça, eu estou realmente mal com tudo que me aconteceu.
– Fale! Desabafe, pode fazer bem pra você.
– Você não vai querer ouvir histórias de um perdedor que só teve desilusões com a vida.
– Pode falar, sou psicóloga e minha profissão é ouvir.
– Ok! Desde que você não vá me cobrar pela consulta! Ela sorriu e seu sorriso era algo deslumbrante. Em outra situação é claro que eu aproveitaria para entrar de sola, mas... Comecei então a contar toda a minha vida. Ela ouvia com atenção e vez por outra me fazia perguntas.
– O que aconteceu com você, acontece com muitas pessoas. Às vezes levamos tempo até encontrar a pessoa certa. Comigo também foi assim. Demorei muitos anos até conhecer o Alberto. Nos casamos e agora estamos separados. Na verdade, eu descobri que não o amava. Ele apareceu numa época em que eu estava fragilizada e isto bastou para que eu confundisse as coisas. Seguimos conversando e ela fazia com que por vezes eu esquecesse o meu drama.
Um aviso de turbulência já próximo a Curitiba onde faríamos uma escala, interrompeu o diálogo e tratamos de apertar os cintos. Um solavanco mais forte e ela apertava o meu braço.
– Tenho medo dessas turbulências. Comentou trêmula.
– Fique tranqüila, não vai acontecer nada. Respondi tentando acalmá-la. Finalmente depois de sacudir como uma velha carroça o avião estabilizou-se e descemos em Curitiba em segurança. A estas alturas aproveitamos para tomar um café. Um problema no reverso iria atrasar um pouco a decolagem. Ela estava naturalmente fazendo seu jogo de sedução e eu percebia que não tardaria a cair em seus truques. Ela também ia para Porto Alegre e combinamos entrar em contato na noite do dia seguinte. Ela me deu um cartão de visitas e comentou.
– O meu celular está aí. Falta agora me dar o seu. Só então me lembrei que o havia jogado na parede antes de sair. Inventei uma história e fui até uma loja comprar um novo. Retomamos o vôo e agora já estávamos íntimos trocando beijos e carícias. Então o aviso de turbulência acabou com nosso idílio que estava começando. Ela agora me agarrava ainda com mais força. Repentinamente, senti que o avião estava em queda, pois a preção sangüínea subia criando um mal estar enorme. Parecia que os órgãos internos do corpo estavam por sair por cima feito creme dental. Olhei pela janela e fiquei branco. A turbina da direita estava em chamas.
– Vamos cair, pensei. E agora? A pressão aumentava violentamente e acho que desmaiei.
Acordei sobre o corpo de um homem, todo retorcido e ensangüentado. Não vi Adriana e embora estivesse inteiro, apenas com dores pelo corpo todo, consegui levantar-me com alguma dificuldade. O avião estava destroçado, mas pela trilha que abrira até parar mostrava que o piloto tentara uma aterrissagem forçada. Aproximei-me dos destroços tentando localizar Adriana. Dois outros passageiros também havia sobrevivido. Um deles chorava desesperado agarrado ao corpo de uma mulher morta. Adriana estava sentada com os olhos arregalados junto à janela da aeronave.
– Você está bem? Perguntei.
– Sim! Respondeu ela. Mas foi a última palavra que pronunciaria. Sua cabeça pendeu para frente. Tentei ergue-la, mas estava morta.
– É assim mesmo falou um dos sobreviventes. Já vi isso acontecer antes.
Droga! Estava acontecendo novamente. Parece que simplesmente aproximar-me de uma mulher gerava uma desgraça. Nem mesmo havia chegado a conhecer Adriana e o destino a levava me deixando desesperado mais uma vez. Jurei que dali para frente eu não iria mais me envolver com ninguém, parece que alguma coisa está impedindo que eu seja feliz. Não demorou muito para chegar a equipe de socorro e fomos levados de helicóptero para Porto Alegre. Depois dos exames de rotina fui liberado. Somente um dos sobreviventes, precisou ser internado. Comprei uma passagem para Santana do livramento. Tinha um amigo lá e iria procurar algum sito. Uma propriedade rural onde pudesse levar a minha vida solitária, talvez cuidando de alguns animais.
Eduardo conhecia todo mundo na cidade e não tardou a localizar uma propriedade a venda. Era um sítio de uns 30 mil metros e daria até para criar umas cabeças de gado. A casa era pequena, mas eu não precisava de nada maior. Pertencia a um homem descendente de índios. Fomos ver a propriedade que ficava ao pé de uma colina e nem permitia acesso por carro. Para chegar até lá, tivemos que transpor uma cerca de arame farpado e andar uns 800 m. Fechei o negócio. Era mobiliada modestamente, mas para mim estava bom. Havia perto dali, isto é cerca de 1500 m, um armazém. Combinamos que no dia seguinte, trataríamos dos tramites legais do negócio. Estava já caindo à tardinha e eu nem havia pensado em comer. Descobri no armário da cozinha uma garrafa de aguardente ainda fechada. Era tudo o que eu precisava. Sentei-me em uma cadeira de palha junto à porta da cozinha e comecei a beber. Ao longe um vulto se aproximava, parecia uma mulher carregando com dificuldade um saco com alguma coisa dentro. Tratei de ir ao seu encontro. Era uma garota de uns 20 anos, morena de olhos verdes e sorriu docemente ao aproximar-se.
– Puxa! O que você está carregando?
– É para você! Meu pai mandou.
– Nossa! Como pode carregar isto tão pesado?
– Estou acostumada.
– Está bem! Falei. Se quiser pode voltar daqui. Eu levo.
– Não! Falou ela. Meu pai disse pra eu limpar melhor a casa e ajudar em alguma coisa pra você comer.
– Olhe, não preciso eu acho que nem vou comer nada.
– Mas tenho que fazer se não meu pai fica bravo.
– Bem! Se é assim então tudo bem. Voltei para a minha cachaça enquanto ela limpava tudo e preparava um carreteiro com milho verde. Para quem não queria comer, eu próprio me surpreendi com o que acabei comendo. Estava delicioso.
– Você cozinha muito bem. Espere como é seu nome?
– Eu me chamo Edinéia. Está bem vou acompanhá-la até a cerca, está escuro.
– Está bem! Eu não tenho medo, mas é bom conversar. Levei-a até a cerca que delimitava a terra e fique observando ela afastar-se por um caminho aberto no campo. Fiquei ali até perdê-la de vista. Depois me recolhi e fui dormir. Na manhã seguinte acordei sedo e fui preparar um café. Não havia café no armário. Me chamou a atenção a cuia de chimarrão. Nunca havia provado, mas resolvi tentar fazer um chimarrão. Coloquei água pra esquentar e achei no saco que ela trouxera um pacote de erva mate. Eu estava tentando sugar a bebida quando ela entrou pela porta da cozinha.
– Está entupida. A bomba.
– Sim! Estava tentando, mas não sei. Você sabe fazer chimarrão?
– Claro! Aqui todo mundo sabe. Eu ensino pra você. Ela então preparou a bebida e pacientemente me ensinou cada etapa do cerimonial que é para os gaúchos a preparação da bebida.
– Mas, o que trouxe você aqui? Perguntei.
– Hora vim ver como você está. Se não está precisando de nada. Precisa comprar umas coisas. Posso ir ao armazém pra você e posso fazer o almoço.
Assim foi feito e no dia seguinte também. Então à tardinha eu lhe falei.
– Edinéia! Você não precisa fazer mais as coisas pra mim. Eu me viro. Ou você quer um emprego. Ela enrubesceu e levantou os olhos.
– Não! Eu não quero o emprego. Puxa! Você não percebeu que venho aqui porque gosto de você?
– Olhe! Eu pretendo ficar sozinho! Jurei não me aproximar mais de uma mulher, já me aconteceu desgraça que chegue.
– Você acredita nisso?
– Não sei, o fato é que sempre que me aproximo de alguém, acontece alguma coisa. Ela ficou pensativa e depois falou.
– Olha! Vou falar com o velho da colina! Ele sabe como resolver isso. Já ajudou muita gente. Dei de ombros e concordei. Afinal fiquei curioso embora não acreditasse nessas coisas. Ela aproximou-se e me beijou. Eu senti seu calor e tive vontade de envolvê-la, mas me contive. Na manhã seguinte ela voltou sorridente e disse.
– Temos que ir até o velho da colina. Ele quer benzer a gente.
– Benzer? Como é isso?
– Você verá. Ele espanta os maus espíritos que estão atrapalhando sua vida. Eu quase caí na risada, mas resolvi entrar na brincadeira e concordei
No dia seguinte levantei sedo. Agora eu podia preparar um chimarrão e a bebida me agradava. Mal havia tomado uma cuia e Edinéia apareceu à porta da cozinha.
– Está pronto? Perguntou depois de me beijar.
– Há! O velho da colina. Sim. Vamos lá.
A casa ficava bem no alto da colina. Era uma construção humilde de madeira e de uma chaminé de um fogão a lenha saia fumaça. O velho aparentando uma idade bastante avançada trajava uma blusa Jeans e uma bombacha surrada. Tinha um palheiro nos lábios e um sorriso franco. A barba amarelada pelo fumo e os longos cabelos davam-lhe um aspecto compatível com a função que exercia. Galinhas circulavam livremente pelo piso de chão batido. Sobre o fogão de barro uma panela de ferro deixava perceber o aroma de feijão sendo cozido. Convidou-nos a entrar. Edinéia o beijou.
– Vô! Este é meu namorado. O velho convidou-nos a passar para uma acanhada peça ao lado da cozinha. Havia um largo tronco provavelmente de um carvalho cortado e disposto como uma mesa, Sobre a base havia uma tigela de barro com brasas. Fez sinal com os braços para que nos aproximássemos e jogou alguns sais sobre as brasas. Pegou um chocalho, como estes que se encontra em lojas de instrumentos musicais e começou uma espécie de reza em língua indígena. Colocou as mãos sobre nossas cabeças e ao final da cerimônia falou.
– Vão em paz, você agora está livre das perturbações que atrapalharam sua vida.
Eu não estava acreditando nas benzeduras do velho, mas Edinéia estava alegre e feliz e saltitava agarrada à minha cintura enquanto tomávamos o caminho de volta. Afinal eu já estava começando a gostar da garota e mentalmente fazia um balanço da situação. Por ali a violência ainda era uma coisa distante, não havia um trânsito maluco e eu nem tinha mais um carro. Também não tinha mais a menor vontade de tomar um avião. Quem sabe as coisas poderiam realmente melhorar? Era um lugar agradável, longe da cidade e a vida tranqüila me agradava.
– Ok! Vamos ficar juntos! Vamos fazer uma experiência, também gosto de você.
– Espere! Não é assim. Vamos casar na igreja, quero um vestido de noiva e uma festa de casamento. Se for morar com você. Você terá que enfrentar meu pai e mais 9 irmãos meus.
– Mas a gente pode namorar não?
– Claro! Mas morar junto só depois do casamento.
Edinéia passou então a vir todo dia, me ajudava na lida da casa e numa pequena horta onde plantávamos temperos, enfim hortaliças em geral. Ela entendia tudo de plantar e começamos uma pequena criação de gado. Comprei algumas vacas, uns bezerros e começamos também uma criação de porcos. O casamento fora marcado para Dalí a três meses depois do devido pedido da mão da moça ao sisudo pai, na presença de seus nove irmãos.
Minha vida então se modificou radicalmente. Eu era novamente feliz. Ela vinha todo dia e claro que aproveitávamos para namorar. Casamo-nos na igreja do bairro que estava lotada. Toda a família dela estava presente e olha que era gente pra caramba. Combinamos que só teríamos filhos depois que ela terminasse a faculdade. Veterinária era o que ela queria e numa região pecuarista, era uma profissão valorizada. Passei finalmente a acreditar que minha vida finalmente se stabilisava. Para quem saiu de casa sem rumo e sem mais esperanças, eu estava completamente feliz e apaixonado por aquela indiazinha alegre que irradiava felicidade. Cinco anos e quatro filhos depois, dois eram gêmeos. Resolvemos comemorar o quinto ano de casamento. Foi um domingo de festa em que a população familiar dela veio em peso. Os nove irmãos, suas esposas e a filharada transformaram a casa em uma bagunça que deu trabalho pra limpar. Fomos dormir naquela noite completamente exaustos depois da faxina completa. Edinéia deitada ao meu lado com a cabeça sobre meu peito acariciava-me e então falou.
– Tenho uma coisa pra te contar.
– Não me vá dizer que está grávida de novo.
– Não! É sobre o velho da colina.
– O Velho? O que tem ele? Preocupei-me, ele deveria estar agora com quase cem anos e Edinéia sempre levava hortaliças, ovos e enfim ajudávamos o velho como seu pai também o fazia.
– É sobre a benzedura.
– Pois é eu nem acreditava nisso, mas parece que deu resultado. Já faz cinco anos e estamos aqui. Ela deu uma risada e falou.
– O velho não é feiticeiro.
– O que? E aquela reza toda?
– Bem! Eu combinei com ele. Na verdade ele falou uma porção de bobagens, como, Oh! Espíritos do céus, se é que vocês existem. Dêem uma mãozinha pra este cara que acredita em azar e fazei com que eles se casem e sejam felizes. Não entendo nada de benzeduras, mas não me deixem mal, combinado?
– Quer dizer que caí numa armadilha combinada entre você e o velho?
– Deu resultado não? Estamos aqui, com nossos filhos e nossos amigos. Eu estou feliz e você nem lembra mais do passado.
Bem isso já faz muito tempo e na verdade amanhã estaremos comemorando 25 anos de casamento. Nossa propriedade será pequena para receber tanta gente. Os nove cunhados, suas mulheres e tantos filhos que eu nem poderia contar e ainda tantos netos que...