Mais um dia ...

Pietra acordou e se deparou com uma manhã fria, mas em que estação estava? Há tempos não sabia exatamente que dia, mês e ano era o tempo presente, pois perdera também do sentido de sua existência. Acordar para quê? Era regida pela dor de uma existência marcada por perdas, traições, desconfiança, decepção, lutas inglórias.

Mas ela sabia que teria que se levantar, colocar, tal qual um palhaço, um sorriso artificial no rosto e seguir em frente. Mais um dia em que preferiria já ter morrido. E Deus sabia que estava viva não por falta de tentativa, mas todas em vão. Quem disse que morrer é fácil?

Olhava para o passado e via seus fantasmas, aqueles mesmos que a assombravam diariamente, numa busca incessante por um contato maior com os que realmente foram importantes em sua vida, mas se foram. E deixaram um rastro de dor, solidão e desesperança. Viver para quê? Por quê?

Olhava para os lados e via hipocrisia, mentiras, truculência, usurpação, farpas apontando em sua direção, além de muita tristeza. Sua vida se resumia em ocultar do mundo as feridas abertas em sua alma. Mas seguia ....

Levantou-se, brincou, riu, fez o que tinha que fazer. Mais um dia ...

Não tinha mesmo outra alternativa, se arrastaria por aquelas horas dolorosas ansiando pelo momento mágico de dormir. Ah, dormir! Palavra mágica que significava o grande anestésico de sua vida. Momentos de desligamento da realidade.

Ainda ouvia as palavras duras que à ela foram dirigidas durante toda a sua vida, ainda guardava a mágoa dos que a feriram e as dores das perdas. Perdas? Perdera tudo e todos. Estava só, aprisionada numa existência sem significado, sem alegrias, sem esperança.

Os livros! Ah, um bálsamo que sempre a acompanhou desde que, aos 5 anos, aprendera a ler. Já lera quase tudo: romances, clássicos, suspense, terror, contos, crônicas, biografias, política, História, ciências ocultas, psicologia, filosofias orientais e ocidentais. Mas tudo isso, mesmo sendo balsâmico, a fazia ser ainda mais introspectiva e adepta do pensamento, da análise e da certeza de que o existencialismo sartreano era a grande verdade, era a essência da vida. Camus, Sartre e outros mostravam que a vida é pura dor. E ainda havia aquela peste da Mildred, tão cruamente descrita em sua falta de amor e solidariedade, tão impregnada de interesses vis, por Somerset Maugham. É, não dá mesmo para ser diferente!

Mas algo havia mudado no mundo, e para muito pior. Pietra olhava para os lados e não mais via solidariedade, amizade verdadeira, companheirismo, segurança, respeito e amor. Ah, mais um dia ...

As horas passavam e ela continuava a fazer as coisas que normalmente tinha que fazer. Sim, tinha obrigação. Se não tivesse estaria numa cama, anestesiada por psicotrópicos, imersa num sono sem sonhos, numa morte temporária e, aí sim, com um sorriso sincero nos lábios.

Pronto, a noite chegou! Abençoada seja para sempre. Poderá silenciar os ouvidos, fechar os olhos, parar os pensamentos e penetrar na escuridão das trevas noturnas que a levaria para o único lugar no qual realmente quer estar: no NADA!

Era preciso aproveitar, pois o tempo voaria e logo estaria diante de mais um dia ....

Emar
Enviado por Emar em 28/04/2010
Reeditado em 28/04/2010
Código do texto: T2224223
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