DAR O NOME III
-Vai ver do gato. A liberdade que lhe concedo faz parte de um pacto que temos. Uma estranha amizade da qual não prescindo. Singularidades do solipsismo.
- Sim, vou já, senhor Amílcar. Vou correndo que não quero perder pitada dessa história. E há-de me também explicar isso do solipsismo, não me vou esquecer que não quero morrer estúpido. Quem tem vergonha de perguntar tem vergonha de aprender...
- Vá lá, vá. Traga outra manta. Arrefeço.
- Já aqui está o Bichano. E a manta. Está melhorzinho assim? Pronto. Não queremos que se constipe.
- Não quero não. Na minha peculiar idade podia ser fatal.
- Ah pois, eu não deixo que se constipe senhor Amílcar...
- Estava a ser irónico, Benito! Nada há mais fatal que o destino. Ou pensas que também ficas cá para semente?
- Nunca se sabe, nunca se sabe... inventam tanta coisa...
- Ora poupe-me!
- Ai que já está a ficar mal disposto. Continuamos a história da Clara Catalão? Viu, agora já não me engano mais. Já não digo Carla Cortesão. Eu até não sou muito burro pois não?
- Fino que nem uma raposa, Benito. Bem, onde é que ficámos?
- O senhor Amílcar ficou aqui na caminha e eu fui lá a baixo ver do sacana do gato que deve ter andado às gatas toda a noite. Está mole que nem papas.
- Esperto que nem um trasgo!
- O Bichano?
-Não! Você, meu menino, você.
- Ai que até fico corado com esses elogios!
-Posso continuar?
-Por quem é!
-Já ouviu falar com certeza no Holocausto. Quem não ouviu? Quem não terá já visto os filmes da praxe? A Lista de Schindlre, O Pianista, uma meia dúzia de séries mais ou menos interessantes e as pessoas acham que já sabem tudo. Nem sonham que tudo isso não passa de eufemismos. E mesmo tudo o que eu lhe contar não passará de um eufemismo. Porque na verdade ninguém nunca saberá o que de facto se passou naqueles campos.
As imagens que os Aliados filmaram quando libertaram os Campos de Extermínio e que se implantaram no imaginário colectivo, aqueles corpos humanos que eram esqueletos, uns ainda vivos, se é que se pode chamar a tal condição de “vida”...
Essas imagens não nos transmitem o que era o típico campo de extermínio nazi...
- Ai não!?
-Vê! Eu sabia que se admiraria. Esses mitos enraizados, essas verdades assentes em apenas uma parte da realidade... E no entanto as fotos foram tiradas, os corpos, mortos e vivos estavam lá para serem encontrados pelos soldados Aliados, coitados... Depois de toda a carnificina não estavam preparados para aquilo...
- Estou confuso, Sr. Amílcar...
- Calma, Benito, eu sei que sim. É natural. O que se passou foi que nos últimos meses de guerra, Himmler ordenou a evacuação dos campos de Extermínio de Leste, a maioria na Polónia. Auschwitz, Treblinka, Chelmno, Sobidor... De maneira que os campos de concentração alemães, que não eram de extermínio, ficaram superpovoados sem que houvesse a possibilidade de assegurar o suprimento de alimentos.
O extermínio que era levado a cabo nos campos de Leste não era pela fome era por gás. O método foi concebido para evitar causar o mínimo de dor e angústia às vítimas de modo a ser o mais eficaz possível. Pretendia-se matar o maior número de indesejáveis o mais rápido possível. Muitos indivíduos se empenharam em aperfeiçoar as câmaras de gás. Mudavam-se os gases para aumentar a rapidez da morte. Cremavam-se os corpos a seguir. Por isso aqueles esqueletos são uma minoria... Os milhões que morreram nunca ninguém os viu. Aqueles cadáveres eram gordos, obesos, magros, assim-assim... Mas nunca ninguém os viu pois eles foram reduzidos a cinzas.
- Por isso existem aqueles que dizem que o Holocausto nunca existiu, que os números estão errados.
- Não havia corpos para contar. E o pior é que aquelas pessoas que morreram já tinham deixado de existir. Apagara-se-lhes o registo de vida. Eram pessoas apátridas, desterradas, proscritas e indesejadas. E depois quando famílias inteiras são mortas quem fica para dar nomes às vítimas?
- Mas a Clara Catalão tem nome.
- Tem. Mas esse nome fui eu que lho dei.
- Era sua filha, Sr. Amílcar!?
- Não, Benito. Se a Clara fosse hoje viva seria ainda mais velha que eu.
- Estou baralhado.
- Pois está, pois está. Se tiver um pouco mais de paciência com um velho cansado...
- Ora ora, Sr. Amílcar, para a sua idade não podemos dizer que esteja cansado...
- Touché novamente, Benito!