HEI-DE MAR
Foi ali observando as ondas que recordei da minha chegada e, de certa forma, fazia agora da observação minha despedida.
Despedia-me das ondas que pouco a pouco engoliriam a cidade que escolhi como escape, ancoradouro da minha fuga. Aos poucos, no entardecer, a maré aproximava-se dos meus pés tão próximos da lambida do mar. Ele, o mar, provava devagarzinho como o fiz mal disfarçadamente naquele primeiro dia que o bebi sedento querendo confirmar seu sal.
Não era praia de pescadores, não era uma ilha, por que se fosse teria de conviver, desfrutar, dar um pouco de mim para saberem quem eu sou, lançarem isca com um arpão e eu abocanhar,. Não me abocaram e o mar tampouco vai sentir todo o meu sabor. Agora temperado, agora salgado, não serei teu fruto.
As pessoas daqui creem na feminilidade do mar, pensam nos cabelos se espalhando na superfície furiosa do mar tocado pela lua. A lua apenas se mira lá embaixo porque sabe — como agora eu sei — que se aproximando demais, ele, o mar, sedento, salgado, embalado pelos tambores que ouviu em outros cantos do mundo, exigirá recompensa.
O mar me quer como oferenda, mas preciso agora dizer, mais do que nunca, que não vou mais observá-lo nem ele a mim. Despeço-me dele e posso deixar de conversar como se fosse um amigo, íntimo como era antes. Posso dizer-lhe adeus por que revejo nas fotos que arremesso ao vento para que as encaminhe ao mar e não sinta minha falta e aproveite meu gosto impresso em papel o paralelepípedo nos quais meus pés calejaram correndo desde menino. Na pedra sólida não afundo como nesta areia coberta de óleo.
A saudade não me consome como você pode pensar. Despeço-me por que me sinto como os resíduos que todos os dias expele de volta aos homens. Oferendas rejeitadas. Expele o lixo dos homens e na areia vejo a embriaguez de garrafas vazias e, provavelmente, os bêbados você já tenha tomado pra si, vejo os preservativos daqueles que te amaram ontem e já te esqueceram, peixes que se afogaram nas noites de teu rancor enquanto de amavam.
Nas noites de teu rancor, me queres mais do que nunca, mas me despeço.
Já é imagem distante vista através de vidros, carregado estampado nos cartões postais, em meus movimentos de fuga, no sacolejar de minha viagem e nunca mais no seu ondular redundante contínuo.
Sinto o calor da pedra retângula e não na decomposição da sujeira expelida comigo.
Mas tens que me proporcionar um adeus desesperado como este? Quer mesmo sentir meu gosto para depois me cuspir salgado demais para o teu paladar na areia oleosa? Me despedaça num tsunami e guarda um membro como recordação e grava em tatuagem os dizeres:
“Esteve no mar e se lembrou de você!”
Mas não tem a quem endereçar. Estive no mar e esqueci-me da rocha que fui. Esqueceram de mim, pois hoje sou areia. Esqueceram por que me quis pra si e aqui fiquei desde aquele primeiro dia. Migalhas somente.