A FOLIA DOS AFETOS

Fumacinha bota a boca no mundo: mia tão alto que parece querer furar os nossos tímpanos. Depois, limpa o prato à língua e dentes. A Cinzenta cuida dos filhotes. É extremada em sua primeira maternidade... O Alemão não segura nada, e fica à distância, mostrando a sua masculinidade, coçando a orelha e lambendo a pata. Ladino, deve sentir-se todo poderoso. Isto que nem tem um ano. A Fumaça lhe dá cada corridão que dá gosto se observar a ligeireza, e depois se deita, cansada, a lamber o pelo. Adormece com um olho de vigília, orelha em pé. A Malhadinha virou homo, agora só anda entreverada com a Branquela. Cecília, a dona da casa, se mija de tanto rir dos bichos e denuncia que a “gatice” tomou conta do outono. Estão umas folgadas, dormindo no sofá da varanda, de barriga pra cima, patas esparramadas. Kéti, a cadela parceira de mais de dezesseis anos, late imaginária sobre os miados que tomam conta do espaço à sua falta. Antes, era a rainha da casa. De repente, do nada, aparece a vizinha gorducha experimentando o vestido de cinco anos de guarda-roupa sem mexer. Somos felinos quando jogamos o corpo na cadeira preguiçosa? Dona Redonda, no pátio contíguo, toda faceira, ouve seu maridão, desnudo, chamá-la de “gatinha” e a lisonja lhe enrubesce as bochechas. A tarde se faz amena com alguns pés-de-vento e chuva forte, retardatários de verão. No mais, embalam-se na rede sob uma chuva de folhagens. Os plátanos dispensam as primeiras folhas e os caquis estão rechonchudos, de cintura marcada. Prosperam alguns cochichos e a rede parece uma sucuri que adquiriu vida após o sono letárgico. Mas é tudo muito rápido e a letargia volta sem pompa ou circunstância, propícia ao cansaço dos afetos. A menina de quatro anos segreda ao ouvido do pai: na rede somos todos gatinhos?

– Do livro ALMA DE PERDIÇÃO, 2009/17.

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