O MASCATE

                                                                                                  —... ? 

                                                                                                  — De tudo o que ofereces
                                                                                                  nada quero, mas não tens aí,
                                                                                                  ó mascate, um certo alicate,
                                                                                                  que me arranque esse amor?



Sentia-se cansada, muito cansada, e a pressa de acordar desvanecera sob o lençol branco. O mundo inteiro concentrou-se ali, sob suas pálpebras apertadas. Por que eu, meu Deus?— queixou-se em suspiros. Queria dormir para eternamente.
No silêncio, o quarto boiava. Queria cuspir aquele amargo sabor de culpa. Culpa maior, muito maior do que podia suportar seu corpo franzino.
A camisola exalava o cheiro do suor e da agonia da noite mal dormida. Podia sentir ainda as alfinetadas ardidas do desejo diabólico que entupia suas veias apimentando seu sangue, infectando suas carnes magras, subindo narinas adentro, misturando-se com aquele gosto de fel.
Por longo tempo conseguiu abafar os pensamentos sinuosos e letais, formigueiro aceso que lhe incendiava a pele revolvendo trilhas, numa agitação interminável. Com o tempo, foi se acostumando com os engasgos, com a casa reconstruída em sua rotina. Também tinha a igreja, as novelas, que apaziguavam. De repente, de novo, as fantasias... Afugentava-as com o desespero de quem foge de abelhas e, exaurida, se abria ao dia, metade daquela outra que se acostumara ser. Mas não importava.
Ao curso das horas teria dominadas aquelas sensações impuras e descabidas. Considerava-se uma mulher equilibrada, sensata, alguém que conhecia bem seu lugar. Remoia, sim, aquela doce e perigosa ansiedade do vazio, discretamente disfarçado na aceitação tácita: mal de quem vive só é essa coisa aborrecida que mofa aos poucos, em desuso. Fazer o quê? Há coisas diante das quais nada se pode fazer. Isso é o certo e está certo.
Às vezes parecia ter engolido uma bomba pronta para explodir. Bobagens! Um calmante nivelava os picos dos impulsos imprevisíveis e o coração tornava ao ritmo suave da vida. Mas, estava ficando tão difícil! A bomba intumescia, soprava chispas feito um vulcão furioso espremendo-a, pouco a pouco, tomando vulto. Maior, muito maior que ela, era aquele mal estar súbito, aquela ânsia cruel que lhe subia pelo peito. Agora, agora, ela não sabia mais onde buscar forças para estancar a ferida aberta em sangue. Nem por reza. Suas orações perderam o sentido.
Precisava — por Deus! — precisava, por sobrevivência, cortar, bem rente à raiz, aquela planta venenosa que lhe brotou dentro. Queria se reconhecer, só e apenas, a grande extensão de si mesma, como sempre fora e, sem se perder de vista, percorrer cada porção, cada canto da tão bem conhecida terra, sem que fosse preciso qualquer instrumento intruso, qualquer outro medidor que não aquele velho coração de mãe e pudica viúva.
Viver aquela situação era ser tocada por uma loucura incurável. Pensar que era capaz de ter aquela espécie de pensamento a deixava em pânico, acuada feito um bicho caçado. Um calor de vergonha lhe punha as faces rubras e as mãos úmidas. Ela, que nunca usara nada mais do que um leve batom, agora se empanturrava de cremes e pós. O vidro de perfume quase acabando, tanto se limpava do cheiro viscoso do desejo que lhe brotava em suores. Medo! Medo de mostrar-se nua e de tão assim, revelar aquele segredo que viera à luz de um dia para o outro, como um furúnculo maligno a lhe contaminar pernas, braços, seios, ventre, por noites seguidas. Dia atrás de dia, desde a visita daquela vizinha que levara aquela revista horrível, ilustrada, inteiramente, com fotos de homens nus, sobre os quais descrevera cobras e lagartos, insinuara indecências que ela jamais ouvira de qualquer boca. E ainda tivera coragem de gesticular e rir. Uma louca que aparecera não sabia de onde, com quem não tinha a menor intimidade! Que sequer conhecia! E com aquela idade!
Ao relembrar, benzeu-se, arrepiada e tolamente. Tinha muita costura para entregar. Fraca, arredou-se da cama para o banheiro mal suportando o próprio peso. Se tivesse condições mudaria para bem longe. Nunca mais queria ver aquela vizinha, nem ouvir suas histórias. O marido era morto, o dinheiro mal dava para as despesas mais simples. Vivia para si, sem poder quase nada. Contava mesmo era com Deus. E Deus, que odiava o pecado! Não, isso não! Não podia ser abandonada! Aqueles arrepios, calafrios, suores... Aqueles sonhos repetidos e a imagem daquele homem que jamais vira... Tudo tão nítido! Pesadelos. Só pesadelos! Castigo! Teste! Provação!
O rosto da vizinha lhe vinha inteiro: aquela cara redonda de cabelos desguedelhados. O cigarro fedido marcado de batom vermelho, as unhas grandes e a respiração ofegante que mal a deixava completar uma frase inteira. Tudo por trás daquele sorriso debochado: “Ai, é bom demais!”.
Depois do banho, naquela manhã, já medida e pesada profundamente, mesa forrada e ferro de goma, disposto e pronto, tentava se concentrar no alinhavo largo das partes da camisa que costurava. O tecido xadrez escorria em ondulações pelas mãos ágeis, moldando-se ao manejo de seu condutor, aos poucos ganhava outra feição, abrandando-se ao tato de pregas içadas, bolsos, mangas e colarinho. O ferro passeava para lá e para cá, massageando a costura desveladamente colocada em seu devido lugar.
Com vagar, Laura seguia cumprindo os pontos, um por um. Seguia como quem planta os passos em larga avenida a ser percorrida, apesar da pequena mesa,da ranhetisse da velha máquina, presente de núpcias do marido, dos pensamentos tortuosos que ferviam em sua cabeça, acompanhando a agulha, o tecido, a tesoura, o ferro, a linha... Precisava se ocupar de corpo inteiro, se limitar ao corte e ao arremate da costura, quase pronta. Precisava, e muito, sentir-se em segurança, sem medo, sem surpresas, sem sustos. Mas, naquele dia, parecia que todo o seu corpo era somente um enorme pensamento cortado em pequenos retalhos que ela prendia e desmanchava, prendia e desmanchava. Quis mergulhar de vez naquele xadrez e se perder no labirinto dos fios tecidos para nunca mais retornar. Prender-se lá, enredar as imagens em grandes novelos e mantê-las assim, aprisionadas... Quis! Queria!
Levou o dia lutando com o invisível. Já era quase noite, quando deu por falta dos botões. Sem os botões não poderia entregar a costura manhãzinha. Atrapalhada, trocou de roupa, calçou os sapatos e saiu. Voltou de muxoxo estalado: esquecera a bolsa. No meio da sala parou e olhou ao redor, procurando alguma coisa que não sabia o que era. Ah, a bolsa! Apressadamente, saiu ainda indecisa, com olhos de quem olhou e não viu.
Lá na rua, misturado ao barulho dos carros e ao movimento dos passantes, bem na esquina com a outra rua para onde seguia, estava ele, inteiro: grisalho, de barbas e dentes brancos. O homem sorria para o rosto firme, de olhos cravados no azul dos olhos de Laura. Uma tontura leve, no primeiro momento, foi só o que ela sentiu. Mas, então, então, então, do sorriso brilhante do mascate despejaram-se anos e anos de palavras esquecidas, mundos e mundos distantes e desconhecidos: preciosas camisolas, prateados lençóis de linho, tesouros de sedas, sons e cores que ela jamais provou senão nos devaneios logrados, nos dissimulados reflexos. Sentiu-se afundar em algodão: leve! Leve! O estrangeiro sorriso, imprevisto manifesto carregado de riquezas, adentrou-lhe, sem cerimônias, pelos órgãos, músculos, nervos e ossos. O semblante de Laura, duro e irrepreensível, corrigido ao longo dos anos sem precisão de espelhos, o rosto e os olhos de Laura, treinados para estirarem-se até e somente os muros altos de um casamento construído a duras penas com unhas e garras, sentiu-os disformes.
As fronteiras liquefaziam-se ao ímpeto de temporais e intensas lufadas de vento. Feito uma palha, rodopiava no centro de um furacão sem conseguir agarrar-se à corda da decência, tão febrilmente tecida, tão cuidadosamente velada por eternidades.
O muro rompeu-se. A bomba explodiu. Tentou, em vão, abandonar o campo de batalha, bater em retirada em frenéticas e dolorosas, negativas. Fez tudo o que podia para voltar e manter-se à superfície. Desobedientes, seus sentidos empurravam-na com brutalidade, impiedosamente, arrancando-a para longe dos botões, do verde, do vermelho, do branco... Da antiga máquina de costura, dos móveis limpos, do fogão bem areado, da panela quente de feijão fresquinho, da roupa dependurada no quintal...
Voltou ao tempo: o curral onde seu pai mantinha preso o gado, o milharal brilhando ao vento, as noites sem luz pendurada nas estrelas, os moços de dentes perolados... A mãe percebia; ela? Sentia. Implorou por náuseas, pela vergonha do arrepio indecoroso que beliscava a carne em mendicância. A cegueira curava-se, finalmente, da escuridão do silêncio de adjetivos ignorados por muito, muito, muito tempo. Os sonhos proibidos e pecaminosos se entornavam com malícia e despudor. Por eles o padre lhe dera primeira comunhão. Por eles orou, anos a fio implorando a Deus o perdão; por eles freqüentou rezadeiras e embebedou-se de camomila, erva doce e cidreira. Melhor casar, a mãe aconselhava.
Agora estava ali, fora, à beira de si, atordoada. O coração estremecia, o ar faltava. As mãos do homem sobre a seda, a seda sobre a pele roçando... A fala melodiosa correndo em fios e favos, ouvidos adentro. Não tinha mais tempo. Não tinha mais pé. A força quedou-se na mais absoluta inércia. Rolou de frente para trás, de trás para frente, indo e vindo de, e para lugar algum, a mercê de armadilhas, incapaz de refrear a ameaça incontinenti. Os sonhos, todos. Os sonhos ceifados na meninice tolhida, os sonhos impedidos na mocidade interrompida, os sonhos privados na maturidade exigida. Os sonhos da mulher, todos, todos, todos, bailando ali, bem à frente dos olhos azuis embaciados, dos nervos sem movimento algum, dos músculos lassos. E nos sonhos, com suas gavinhas afiadas, a cupidez, a tentação, a fome devastadora de amor.
Foi que de repente, mas muito de repente, Laura estancou. Por um tempo ficou ali, como se a vida lhe fosse arrancada e seu corpo mumificado. Aí, como se bebesse o próprio fôlego, transitoriamente interrompido, tornou. Levou as mãos à nuca e esticou o corpo em movimentos ondulantes. Num bocejo trêmulo se contorceu sinuosamente como se expulsasse desgastada e velha preguiça, há muito acumulada. Abriu os braços como uma ave que se prepara para o vôo e no impulso vigoroso deixou-se sair toda, incondicionalmente livre. E, saiu borboleta, novinha em folha, em direção ao desconhecido.
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 30/01/2010
Reeditado em 30/01/2010
Código do texto: T2059807
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