O CÃO

Não sei de onde ele saiu. Meia volta e dei de olhos com ele. No imediato nos cruzamos sem revelações, ao acaso da curta distância. Por pouquíssimo instante, fração de segundos. Então, saímos cada qual de seu mundo para aquele ali, novinho em folha. Primeiro ele, depois eu.
Ele, sentado no meio da rua balançava a cauda enquanto esticava para dentro do meu, o olhar de quem descobre e vive a primeira vez. Eu, hirta, mas em estado aéreo de graça, derramava sobre ele todo o meu inexperiente afeto. O cão era, absoluta e absurdamente, real sob a luz tênue da rua. Existíamos sós, um e outro, um no outro.
De repente, uma gargalhada vinda de não sei onde, desarmou de pronto a armadilha. Deus! No susto, feito um relâmpago, horrivelmente humana, desfiz todas as rotas, roteiros, cartas, tudo, tudo que pudesse ter sido ou fora preparado, escrito, previsto para aquele encontro. Perversamente afrouxei as amarras que nos prendiam e saí, sem culpas, deixando-o para trás.
Aquele cão era apenas um cão perdido numa noite qualquer como tantos outros. Ele, não. Ele me seguiu indefeso, visgado por estranho chamado. Atravessei a rua, dura e em rijo traçado, sentindo-o em meus calcanhares. Não acreditei muito que ele continuasse me seguindo por muito tempo. Apostei em sua desistência, tão logo percebesse meu descaso, mas ele continuou ostentando sua obstinação.
Não queria, mas olhei para trás. Instantaneamente sentou-se e, de orelha em pé, expôs-se sem ressentimentos. De novo nossos olhares se cruzaram. Dessa vez, sem pressa. Procuramos um pelo outro. Procuramos um no outro, os buracos vazios de nossa ternura e trocamos algumas fotografias de alma.
A pelagem amarela e branca, sem viço, guardava em si o corpo de um filhote, ainda. As pupilas negras me engoliam. Eu estava lá, feito um brinquedo-motivo de sua alegria. Com certeza ele sorria, dentes de leite e língua de fora, direcionando o focinho em minha direção. Mais uma vez, quebrei meu olhar. Sem avisos, tornei a minha impiedosa condição humana: numa rápida e maldosa investigação adivinhei-lhe a fome e presumi seu interesse no pão que comprara, muito mais por hábito do que por precisão. Mecanicamente busquei a bisnaga na sacola e lhe estendi num gesto tosco. Ele a abocanhou com suavidade. Pronto: cumprira-se o propósito daquele inusitado enlace.
Sem estranheza tornei ao caminho. Insistente, ele me acompanhou. Considerei minha fragilidade: sem nenhum trabalho, sem qualquer custo, aquele bichinho esperto me arrancara o alimento. Em sua sabedoria de cão, detectada a fraqueza do outro, repetir a façanha era garantir para si outro quinhão, possivelmente. Não era mais aquele cão, o cão. Era só um animal faminto, um cão ser, de ruas e esmolas. Disposta a afastá-lo com um belo susto, girei rapidamente, mas, antes dele vi o pão, ainda inteiro, largado no chão, no meio de uma poça de água. Ele ao meu lado, em festa.
O instinto de superioridade encheu-me de brio. Eu merecia mais do que uma explicação diante da recusa tão inaceitável. Safado! Murmurei entre dentes. Para me ver livre do incômodo assédio e confirmar, finalmente, minha autoridade, peguei a bisnaga e parti ao meio. Com certeza o bocado era grande demais. Educadamente ele pegou, um a um, os pedaços partidos e largou ao chão.
O atrevimento do cão aqueceu-me as faces. Devagar, tomei o pão e reparti a metade em duas outras e deixei ali, na rua. Ele não comeu. Arrumou-se de dengo e com a mandíbula entreaberta me ofereceu seu sorriso de cão satisfeito. Envergonhada e desarmada, então, deixei que seguisse ao meu lado.
Inauguramos um novo caminho. Já não me sentia tão mortalmente ofendida em minha sapiência, já não tentava resistir nem adivinhar sua próxima investida. Ele trotava nas patas brancas, pisando sobre a própria felicidade, exibindo com legítimo orgulho sua vitória. Definitivamente, aquele cão me subjugara.
O caminho não era longo. Ele e eu sabíamos. Eu andava agora mais devagar, encurtando os passos como se com isso pudesse esticar o trajeto. Ele entendeu. Devidamente documentados, testemunhada a recém-nascida amizade, queríamos mesmo ficar um pouco mais, um com o outro. A rua silenciosa ia em si mesma a lugar algum. Passo a passo chegamos ao ponto final da caminhada.
Em frente ao portão, ele parou, cavalheirescamente, à espera que eu entrasse, sem qualquer cobrança. Alongou o olhar e ficamos ali à beira um do outro, parados, vivendo aquele instante como se vivêssemos uma vida inteira, mascando a incômoda sensação de que poderíamos ter sido, mas não fomos.
O medo passou entre nós. Bastaria um gesto, nós dois sabíamos, um simples gesto, sem qualquer som, para mudar o destino onde ancoramos. Mas o significado de “para sempre” era pesado demais para nós dois.
A despedida insistia em se manter suspensa. Buscávamos coragem em algum lugar ainda desconhecido dentro de cada um. Indeterminados e solenes esperávamos o instante iminente. O tiro da pistola, a bandeirada que cairia feito um facão amolado sobre o fio frágil do destino tecido ao acaso de uma noite fria; o rompimento tácito e definitivo, desendereçado dos laços, ainda tão imaturos, que nos ligava.
Delicadamente ele tomou a iniciativa: desprendeu-se e, sem despedidas, sem olhar, sem pena, tomou a rua, perdido em solidão, arrastando o fio partido noite adentro. Girei sobre os calcanhares para o lado oposto, abri o portão tão rápido quanto fechei e corri para receber, de bom grado, a comprida lambida de meu cão.
Estranho... Às vezes tenho a sensação de que uma outra eu existe por aí e que, por alguma fenda, em algum rápido momento, nos tocamos. Em algum lugar, eu e aquele cão nos pertencemos.
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 30/01/2010
Reeditado em 30/01/2010
Código do texto: T2059058
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