Encontrei em um livro antigo...
 
 
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Encontrei num Livro Antigo...
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Um dia, por acaso, a chuva me pegou na rua, desprevenido. Abriguei-me debaixo de uma marquise. Para passar o tempo enquanto esperava a chuva passar,  fiquei olhando a vitrine de um sebo. Gosto muito de ler,  mas não gosto de livros velhos. De segunda mão. Livro que já teve outro dono. Uma crença, nada mais que uma crença, mas perturbadora. Os livros guardam em suas páginas memórias não só de quem os escreveu, mas também de quem os leu. Toda vez que pego em um livro antigo, fico bastante mal. lacrimejando e fungando. Dizem que é alergia. Sei não. Por via das dúvidas evito a leitura de livros que não sejam aqueles que comprei de primeira mão. Cheirando novo. Mas, naquela tarde chuvosa não resisti. Ele estava lá, como se estivesse a minha espera. Não conseguia tirar os olhos dele. Por fim, capitulei. Entrei no sebo e sem perguntar preço estiquei o braço em sua direção para que um atendente o pegasse. Ele o colocou em uma sacola plástica e me entregou falando o preço. Era muito caro, precisei fazer um cheque. E sai dali apressado como se estivesse fazendo alguma coisa errada. A chuva dera uma trégua e corri até o estacionamento onde peguei meu carro. Guardei o     livro no   porta luvas e me esqueci dele, por um longo tempo.
  
Algum tempo depois fui chamado às pressas para ir até o pequeno vilarejo onde nasci: minha mãe havia morrido. Era uma viagem longa e eu não me sentia em condições de dirigir. Um amigo do jornal se ofereceu para ir comigo. eu disse que não precisava mas ele insistiu. Concordei, desde que não precisássemos conversar. Queria estar comigo mesmo e com as memórias de minha mãe. E enquanto ele dirigia, olhos fixos na ondulante paisagem, eu viajei até o meu passado.
 
Eu sempre soube que havia um mistério na vida de minha mãe. Um mistério ao qual nunca tive acesso. Eu sabia não porque alguém tivesse dito alguma coisa concreta. Mas ouvi durante todo o tempo em que vivi com ela pessoas dizendo:- Coitada da Ana. Ela nunca se recuperou. Nunca soube do que ela nunca tinha se recuperado. Mas seus olhos tristes, sua boca de pouco riso, suas roupas severas, os suspiros quando pensava estar sozinha,o modo como me olhava as vezes tudo isso me levava a crer que realmente ela nunca tinha se recuperado.
 
A viagem estava sendo demorada. Esgotado em meus pensamentos e tentando distraí-los abri o porta luvas do carro. Lá estava a sacolinha amarela do Sebo. Peguei-a e tirei o livro dela, pela primeira vez. Foi então que vi o título. Das impossibilidades do amor – O autor, completamente desconhecido. Achei engraçado porque ele tinha o meu nome – Tito Lívio. Não é um nome comum, mas apesar disso só pensei em pura coincidência – eu ter comprado um livro sem saber porque o comprara e descobrir que o autor tinha o meu nome. Ao abri-lo, uma nova surpresa – o livro era dedicado a uma mulher chamada Ana – o meu amor impossível. Ana era o nome de minha mãe. Bastante interessado comecei a ler os poemas. Eram bons, muito bons. Mas tristes, muito tristes. Um a um os poemas contavam a história de um amor impossível. Um homem casado com filhos, figura proeminente em sua cidade. Um tempo em que nem Deus nem os homens permitiam que os laços de um casamento fossem desfeitos e vidas pudessem recomeçar. Toda história contada em poemas. No último deles, que nem poderia realmente ser chamado de poema, o infeliz lamentava profundamente que ela não o houvesse esperado. Não houvesse confiado nele. E dizia –Ao meu filho que meu nome carrega/ você deu, de outro, o sobrenome.
 
A medida que eu ia lendo meu coração cada vez mais se sobressaltava. Não podia ser eu, de modo nenhum. Eu nunca tivera a menor suspeita de que o homem de que eu levava o sobrenome não tivesse sido o meu pai, embora fossemos muito diferentes. Mas quando cheguei a última página, protegido parcialmente pela orelha do livro, lá estava ele, o retrato – era minha mãe, bem jovem ainda, o mesmo retrato que eu encontrara um dia entre seus guardados e o pedira para mim e ainda estava lá, em um elegante porta retratos na cabeceira de minha cama.Um retrato de minha mãe com sua letra bonita de professora com a dedicatória: para meu único e verdadeiro amor. Ana.
 
Chorei muito. Chorei ali no carro enquanto ocultava o rosto entre as mãos. Chorei enquanto abraçava o meu pai quando ele veio me receber na porta. Chorei sobre o caixão de minha mãe. Pouco antes de fecharem o caixão, eu me aproximei dela e beijando-a coloquei o livro debaixo de suas mãos frias cruzadas junto ao coração. E nunca, nunca , até hoje contei essa história para ninguém. Só para você. Por isso desista. Não pense que eu vou permitir que você dê a meu filho o sobrenome de outro homem.
 
Maria Olímpia Alves de Melo
Lavras, 15 de janeiro de 2010