REGIONALISMOS

Sob aquela lua sem tamanho, Lagoaninho disparava.

Disparava assim como quando saía à vila de olho coberto e chapéu também pra esconder o rosto. Não que tivesse medo, que medo os outros tinham dele. Corria quando os tiros começavam, quando Lagoaninho vinha da direção da Fazenda. O chapéu e o olho coberto pelos óculos era pra que não vissem a alegria dos olhos. Vissem a alegria, encarando assim olho no olho, olho dele vendo o olho do outro enfrentador, teria de furar com tiro. Teria de fazer bucho vazar.

O bucho vazava com a vida de cachaça. Por que valente também tem sofrer e os tragos na venda davam riso nos dias de lembrança. A cara inchada não via mais glória do medo dos covardes que não olhavam os seus olhos pra ter de atirar.

Sob aquela lua sem tamanho disparava novamente.

Na fazenda, disparava nos inimigos de outrora. Disparava e morriam todos. Um a um, o chão se cobria de homens de bucho furado.

Lá na frente, na grota do Tijuco Preto, um deles resistia, parecia querer pelejar. Arrancaria seu couro.

Aproximou-se devagar, feito gato-do-mato, se arrastando leve no mato cheio de sereno. O adversário procurava a garrucha que deixara cair no chão. Pedia pra morrer mal cuidando dos pertences.

À meia-noite, que era a hora que Bentinho Alves havia perdido o relógio quando pescava, voltava para procurar. Supersticioso que era — se havia perdido naquele horário, seria naquela mesma hora que o encontraria.

Lagoaninho se esgueirou e ordenou que ficasse em pé.

Bentinho Alves nada ouviu. Continuou campiando.

Lagoaninho gritou mais uma vez, com o revólver já engatilhado.

Bentinho Alves olhou para trás. Um objeto reluzia no escuro sob aquela luz sem tamanho.

Ia sentir o gosto do chumbo. Mas Bentinho não ouvia as ameaças e seguia naquela direção. Chegava tão perto que, por não demonstrar medo, fazia Lagoaninho pensar que se tratava de alma de outro mundo. Era assombração, mesmo que Lagoaninho não acreditasse nessas coisas de alma. “Não acredito em almas!”— disse resoluto para si mesmo.

Bentinho Alves acreditava.

Quando Bentinho viu o relógio suspenso no ar, sabia que era coisa de outro mundo.

O relógio no braço de Lagoaninho marcava meia-noite. Era o horário das almas.

Olho no olho, a lua mostrou seu tamanho, cresceu como grande olho, olho de gato-do-mato, olho de assombração, assombrações se olhando reveladas pela luz da lua.

Pelejavam.

Lagoaninho disparou o tiro e Bentinho Alves esticou a mão para pegar o relógio.

O tiro nem ecoou na noite. O relógio Bentinho trouxe para contar que encontrara no braço do morto.

Que Lagoaninho morrera, todos sabiam. Mas depois da mentira contada por Bentinho Alves, mesmo não acreditando, naquelas noites de lua sem tamanho. Lagoaninho disparava mesmo morto. Morto sem tocaia. Que uma alma de outro mundo veio lhe assustar — acreditava — e o fizera morrer do coração. Enquanto esperava a revanche, seguia tomando uns tragos para sorrir naquelas noites de lembranças.

Fabiano Rodrigues
Enviado por Fabiano Rodrigues em 27/01/2010
Reeditado em 27/01/2010
Código do texto: T2054217
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